As Fragilidades do Estado de Direito e o Activismo Judicial

Encontra-se em circulação um Memorando, com data de 23 de Julho último, elaborado pelo juiz do Tribunal Constitucional Carlos Teixeira no âmbito da preparação para uma eventual deliberação por parte desse tribunal acerca da lei de revisão constitucional aprovada pelo Plenário da Assembleia Nacional em Junho passado.

Este Memorando está a ser divulgado publicamente no jornal de Nok Nogueira Isto é Notícia.

Apesar de não representar a posição do Tribunal Constitucional – mas apenas a opinião de um dos seus juízes – nem constituir o veredicto final sobre a lei da revisão constitucional, a verdade é que o documento revela grande discordância relativamente a algumas disposições da proposta de lei e, debaixo do manto de garantia do cumprimento de determinados limites constitucionais, acaba por propor a declaração de inconstitucionalidade de diversas normas.

Não se pretende aqui discutir cada uma das normas que o juiz Carlos Teixeira acredita deverem ser abolidas ou reformuladas. Antes pretendemos colocar esta intervenção num outro patamar: o da construção do Estado de Direito e o do questionamento do papel dos juízes.

O Estado de Direito não é uma abstracção ou uma teoria, ao contrário do que muitas vezes se faz crer em discussões públicas; é essencialmente uma prática que depende de um pressuposto simples: a existência de normas elaboradas por órgãos com legitimidade, e o cumprimento e acatamento dessas normas por todos. O Estado de Direito é tão simples quanto isto: um Estado em que ninguém está acima da lei, todos são tratados por igual e todos cumprem a lei. É por isso facilmente compreensível a razão pela qual um dos papéis mais importantes, se não o mais importante, para a edificação do Estado de Direito é desempenhado pelos juízes. A.V. Dicey, autor da formulação clássica deste conceito no mundo anglo-saxónico, definia como primeiro princípio do Estado de Direito que nenhuma pessoa seria punida ou ficaria sem bens ou liberdade, excepto por violação de uma lei aprovada de forma ordinária e de acordo com uma decisão dos tribunais comuns do país.

Ao aplicarem a lei, são os juízes que devem assegurar o tratamento igualitário e a observância geral da norma. Se os juízes aplicarem a lei com independência, imparcialidade e objectividade, verifica-se um Estado de Direito. Se, pelo contrário, entram em considerações políticas, seguem o “espírito do tempo”, procuram agradar à opinião pública, ao poder político, à oposição ou obter manchetes simpáticas nos jornais, então não se verifica um Estado de Direito, mas uma pura arbitrariedade judicial. Há uma grande tentação do poder judicial para tomar nas suas mãos um certo justicialismo ou determinados objectivos políticos, e assim pôr em causa o Estado de Direito.

É evidente que em Angola não há ainda um Estado de Direito pleno. Durante décadas, assistiu-se a uma aplicação selectiva e arbitrária da lei e à submissão do poder judicial ao poder político, à imagem do modelo chinês, como aqui já escrevemos. Actualmente, os mais optimistas podem admitir ou desejar que se esteja num processo de construção do Estado de Direito, mas trata-se de um trabalho em curso, de uma caminhada diária e permanente. É neste contexto de tentativa que deve ser visto o Memorando do juiz Carlos Teixeira. E o problema é que a posição assumida pelo juiz enferma dos vícios que assinalámos e pode perturbar a construção do Estado de Direito. Se não se verifica uma submissão ao poder político “à chinesa” e isso é de aplaudir, constata-se ainda assim uma postura correctiva e interventiva, que tenta impor modos de pensamento subjectivos e visões pessoais que não estão expressas na Constituição. O juiz Carlos Teixeira quer moldar a Constituição ao seu próprio pensamento. A questão é que ninguém lhe conferiu essa incumbência: nem a Constituição, nem o povo soberano.

Numa análise à lei de revisão constitucional, o Tribunal Constitucional tem de entender que está perante uma manifestação da vontade representativa da soberania popular representada por uma maioria qualificada, e nesse sentido deve abster-se de tomar posições políticas.

Em termos materiais, o artigo 236.º da Constituição em vigor determina que qualquer revisão tem de respeitar os seguintes limites:

a) A dignidade da pessoa humana;

b) A independência, integridade territorial e unidade nacional;

c) A forma republicana de governo;

d) A natureza unitária do Estado;

e) O núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias;

f) O Estado de Direito e a democracia pluralista;

g) A laicidade do Estado e o princípio da separação entre o Estado e as

igrejas;

h) O sufrágio universal, directo, secreto e periódico para a designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania e das autarquias locais;

i) A independência dos Tribunais;

j) A separação e interdependência dos órgãos de soberania;

k) A autonomia local.

Como se constata a partir desta enumeração, trata-se de formulações amplas, de princípios e não de regras detalhadas. O que o Tribunal Constitucional tem de verificar é apenas se a lei de revisão procede à eliminação de algum destes princípios. Por exemplo, se cria uma monarquia em vez de uma república, se transforma Angola num estado federado ou se nomeia um cardeal directamente como supremo magistrado da nação. Quer isto dizer que o Tribunal Constitucional tem de aferir se o núcleo essencial dos conceitos expressos pelo artigo 236.º é respeitado. Não tem de, nem pode, decidir sobre a melhor concretização desses princípios, as diferentes alternativas existentes, os detalhes ou as opções do legislador constitucional. A análise do tribunal é uma análise axiológica e não minuciosa. O tribunal não se substitui à Assembleia Nacional porque não tem legitimidade para isso.

Desse modo, a metodologia seguida nunca será de especificação de artigos revistos, mas de questionamento relativamente a cada um dos itens do artigo 236.º, perguntando-se o tribunal se algum dos artigos da revisão viola o núcleo essencial de cada princípio imutável. Este tipo de verificação da constitucionalidade é forçosamente diferente daquela que está subsumida na metodologia constitucional tradicional, e é diferente porque neste caso não se está perante o poder legislativo ordinário, mas perante o poder constituinte de revisão, algo que tem uma natureza diferente.

É por isso que o texto adiantado pelo juiz Carlos Teixeira, sendo douto, é torto, pois não respeita os cânones de legitimidade de uma revisão constitucional e procura impor a sua visão e subjectivismo a um processo de importância fulcral. Da submissão do poder judicial passamos à politização do poder judicial. Um Estado de Direito não é compaginável nem com submissão nem com politização dos juízes. É fundamental que os juízes encontrem o seu lugar numa teoria harmoniosa da Constituição. Esse lugar nem é o da obediência cega, nem o da anarquia e luta de poderes, mas sim o do cumprimento escrupuloso dos desideratos de independência e imparcialidade das magistraturas. Os problemas políticos não têm de ser resolvidos pelos juízes, mas pelas assembleias representativas, pelos partidos, e em última instância pela soberania e o consentimento popular.

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