Juiz do Supremo Suspenso por Delito de Opinião

“Quos volunt di perdere dementant prius” (Os Deuses primeiro enlouquecem aqueles a quem querem destruir).  Esta frase, consta nos anais da sabedoria da Humanidade desde os tempos da Grécia clássica, descreve perfeitamente a a disputa que envolve o juiz conselheiro Agostinho Santos e alguns dos seus pares nos tribunais superiores de Angola, ainda a propósito do concurso para a designação do presidente da Comissão Nacional Eleitoral. Dos vários episódios que se têm sucedido, é a magistratura que sai desprestigiada no final.

A notícia mais recente é que, no passado dia 19 de Maio, o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) deliberou suspender por seis meses Agostinho Santos (na foto) como juiz, por “comportamento indecoroso”. Pedro Chilicuessue, o porta-voz do CSMJ, informou o público de que a deliberação tem como consequências a perda total da correspondente remuneração, da antiguidade na carreira, para além de lhe ser vedada a entrada nas instalações do Tribunal Supremo.

Esta deliberação é paradoxalmente previsível e surpreendente. Previsível, porque se adivinhava um movimento de alguns juízes supostamente ofendidos pelas declarações de Agostinho Santos no sentido de o silenciar; tarefa em que tomou a dianteira o juiz do Tribunal Constitucional Carlos Burity da Silva, de quem Santos afirmou não ter aptidões específicas para ser juiz constitucional, uma vez que a sua formação específica era em assuntos de testamentaria e sucessões, o que não lhe conferiria qualquer aptidão em direito constitucional.

Contudo, apesar dos movimentos desenhados, a surpresa é a reacção mais intensa a esta decisão. Surpresa, em primeiro lugar, devido ao facto de, aparentemente, Agostinho Santos não ter recebido nenhuma comunicação fundamentada sobre essa suspensão. A notificação terá sido feita, inicialmente, através da televisão, pela TPA, só depois lhe tendo sido entregue um papelinho com a conclusão de que estava suspenso, o qual não continha nem a deliberação nem a respectiva fundamentação. Se alguns juízes agem entre eles assim, sem respeito pelas formalidades essenciais, quando um declara que está a ser enganado pelos outros, o que pensar sobre o que farão no quotidiano judicial ao cidadão comum?

No entanto, o mais reprovável é o suposto motivo da suspensão. Alegadamente, Agostinho Santos terá tido um “comportamento indecoroso”, o que justifica a suspensão. Há aqui uma interpretação pouco consentânea deste conceito por parte do CSMJ. O “comportamento indecoroso” não se aplica a uma situação como a presente, em que o juiz exprimiu na imprensa o seu pensamento sobre determinadas decisões judiciais. Agostinho Santos está no pleno exercício da sua liberdade de expressão e, a apontar-lhe alguma falha, seria quanto ao estrito cumprimento do dever de reserva de juiz. Mesmo isso é duvidoso, até porque se teria de balancear um valor constitucional – a liberdade de expressão – com um valor funcional, mas não constitucional – o dever de reserva dos magistrados, que aliás surge de forma muito restrita na lei angolana. Entendemos que, em caso de conflito entre estes dois valores (liberdade de expressão e dever de reserva), sendo um de natureza constitucional e outro funcional, deve prevalecer o valor constitucional, isto é, a liberdade de expressão.

Contudo, nada disto tem a ver com “comportamento indecoroso”. Os factos que preencherão o “comportamento indecoroso” são do tipo: “exibir os genitais em público”, “surgir visivelmente alcoolizado nas audiências em tribunal” ou “entrar em rixas físicas em bares ou locais públicos”. Não consta que o juiz conselheiro Agostinho Santos tenha produzido algum destes comportamentos. A realidade é que a sua actuação se desenvolve noutro patamar, naquele da liberdade de expressão e opinião. E a verdade é que a magistratura – e o país em geral – só têm a ganhar com uma maior discussão e crítica dos assuntos. É do diálogo e da interacção crítica que surge a verdade.

É importante fazermos um exercício de direito comparado, para observar situações recentes decorridas no continente africano, em que juízes de tribunais superiores foram suspensos.

No ano de 2015, o governo do Gana suspendeu sete dos 12 juízes do Tribunal Superior, na sequência de alegações de suborno decorrentes de um documentário feito por um jornalista de investigação. A decisão fez parte da resposta oficial a um documentário que causou polémica no país da África ocidental, porque mostrava juízes a aceitarem dinheiro por meio de intermediários.

Em 2016, o presidente queniano Uhuru Kenyatta suspendeu o juiz do Supremo, Philip Tunoi, devido a acusações de este ter recebido um suborno de dois milhões de dólares num processo eleitoral. Kenyatta nomeou um painel de sete membros para investigar a conduta de Tunoi.

No ano passado, na África do Sul, a Comissão do Serviço Judicial aconselhou o presidente Cyril Ramaphosa a suspender o juiz do Tribunal Superior do Cabo Ocidental Mushtak Parker, até que um tribunal de conduta judicial decida se recomenda o seu afastamento por falta grave. Seria a primeira suspensão por má conduta desde 1994. O afastamento de Parker é pedido por dois motivos. Em primeiro lugar, terá estado envolvido na apropriação de fundos de clientes enquanto advogado; em segundo lugar, surge numa história de agressão e contra-agressão física com outro juiz nas salas do tribunal.

Da análise destes três casos, no Gana, no Quénia e na África do Sul, verificamos que as suspensões têm sempre por base comportamentos graves, ou ligados à corrupção – e não deixa de ser estranho que nenhum juiz tenha sido afastado por corrupção em Angola – ou relacionados com refregas físicas.

A propósito do não afastamento de juízes dos tribunais superiores em Angola por corrupção, há que relembrar uma velha história que terá envolvido o Doutor Raul Araújo. Consta que há uns anos este terá afirmado que os magistrados angolanos eram corruptos. Depois dessa afirmação, foi nomeado juiz do Tribunal Constitucional por José Eduardo dos Santos. Hoje, aparentemente, esta frase de Araújo seria entendida como um “comportamento indecoroso” e a sua carreira no areópago constitucional nem teria começado.

O ponto a sublinhar é que não podem existir afastamentos por delitos de opinião. Não se concebe que o exercício da liberdade de expressão possa gerar a suspensão de um juiz. Na verdade, ao criar-se um precedente de punição como aquele que afecta o juiz conselheiro Agostinho Santos, está encontrado um poderoso mecanismo para limitar a independência dos juízes. A dissensão e discussão são elementos fulcrais do processo democrático, que garantem que a vida pública não é opaca e não se move por interesses obscuros. É da mais relevante importância que a magistratura judicial seja uma janela aberta e arejada, em que o clientelismo, a prepotência e a arbitrariedade não sejam a norma. Por isso, a luta de Agostinho Santos começa a ter um significado político-constitucional óbvio: o da garantia de transparência e imparcialidade no funcionamento do poder judicial. O que começou por ser uma discussão, algo incompreensível, sobre classificações em concursos públicos está a tornar-se um desafio à solidez do Estado de direito em construção.

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