Angolano/a é Cerveja

Pela cidade de Luanda, uma grande campanha publicitária, com painéis gigantes afixados nas laterais de edifícios e em pontos de destaque, anuncia: “Somos angolanos, somos Cuca”. O sentido da imagem publicitária é inequívoco: ser angolano é ser Cuca. E não estão sequer excluídos os recém-nascidos em solo pátrio, que ficam imediatamente associados ao consumo de álcool.
A banalização da pessoa humana – em que a cidadania angolana é igualada a uma bebida alcoólica – tem merecido toda a indiferença do governo, da oposição e dos próprios cidadãos. Ninguém se indigna, ninguém se ofende. Somos todos cerveja.
De forma extraordinária e com total impunidade, essa campanha tem passado no horário nobre da Televisão Pública de Angola (TPA), um órgão pertencente ao Estado, de todos os angolanos, os mesmos ofendidos e indiferentes.
Nas barbas dos deputados, mesmo junto ao edifício da Assembleia Nacional, um órgão de soberania, a publicidade da Cuca está colocada com grande visibilidade. Não é possível passar pela Assembleia Nacional sem a ver. Nada que incomode os deputados, os chamados representantes do povo.
À letra, a publicidade não dá margem para ambiguidades. O texto está acima da imagem nocturna da bela Baía de Luanda, com a imagem justaposta da garrafa de cerveja e de um fino com o logo da marca. “Somos Cuca” está escrito em letras bem maiores do que “somos angolanos”.
A Companhia União de Cervejas de Angola (CUCA) é o maior fabricante de cervejas no país e existe há 69 anos. A multinacional francesa Castel Groupe é a principal accionista da Cuca, secundada pelo braço financeiro do MPLA, a GEFI. Até Dezembro passado, o Estado angolano negociava a venda da sua participação de um por cento na referida cervejeira.
Os cidadãos franceses Philippe Frederic e Renaud Brard são, respectivamente, administrador delegado do grupo Castel em Angola e director-geral da Cuca. O Grupo Castel controla nove das 12 fábricas de cerveja existente no país, incluindo as marcas Eka e Nocal.
É risível mencionar que, há anos, as participações societárias do Estado nas cervejeiras Cuca (1%), Eka (1%) e Nocal (4%) eram as que sempre rendiam dividendos para os cofres públicos. Em 2018, essas participações foram as únicas a dar lucros ao Estado, no valor equivalente a dois milhões de dólares. Perante as imensas riquezas naturais do país, de entre as centenas de empresas com fundos públicos, aquilo que regularmente dá lucros – irrisórios – para o Estado é, imagine-se, uma percentagem numa fábrica de álcool.
De certo modo, esta campanha publicitária reflecte a relação entre a sociedade e o Estado. O preceito constitucional segundo o qual a soberania reside no povo é colocado no liquidificador de uma empresa, que o transforma em álcool.
Por aqui podemos notar o abandono a que se encontra votado o conceito de nação e patriotismo em Angola. Temos assim um governo reduzido à gestão da coisa pública e alheio aos valores de identidade, unidade e orgulho nacionais. O mesmo se pode dizer da oposição e da sociedade civil. As questões centrais sobre Angola permanecem confinadas na luta pelo poder político, nos esquemas de sobrevivência e na arte da intriga, que domina a opinião pública nacional.
Numa das suas campanhas, especialmente bem sintetizada no mural da sua fábrica, a cervejeira anunciava: “Cuca, o orgulho nacional”. Mais uma vez, o texto não deixa espaço para ambiguidades. Essa cerveja não é apenas um orgulho, é o orgulho de todos os angolanos
“Como é que o orgulho nacional é mesmo a cerveja?”, interroga-se o cidadão Sihanouk Fortuna.
Permite-se, com naturalidade, que se glorifique o consumo de uma bebida alcoólica como elemento identitário de todos os angolanos sem excepção. Até o presidente da República é Cuca. “O que se pode dizer de um governo que permite essa campanha? Ser angolano não é ser Cuca. Essa campanha é uma invasão inqualificável da nossa personalidade enquanto cidadãos angolanos. Atenta contra a nossa identidade e cultura”, questiona-se e afirma a psicóloga Paula Araújo.
Combate contra a bebedeira
Em Outubro passado, o governo de Angola anunciou a submissão ao parlamento da proposta de Lei sobre o Regime de Acesso e Consumo de Bebidas Alcoólicas. O diploma visa regular a disponibilização, venda e consumo de bebidas alcoólicas ao público e prevê multas de até 400 mil kwanzas.
Nessa altura, a ministra da Saúde, Sílvia Lutucuta, declarou à imprensa que o consumo de bebidas alcoólicas no país “é um grande problema de saúde pública”. “Não podemos continuar assim, (…) há toda a necessidade de se restringir o consumo de bebidas alcoólicas”, referiu a ministra à imprensa.
Paula Araújo fala do impacto psicológico profundo que a campanha publicitária da Cuca tem sobre os cidadãos: “Na procura individual de soluções para o sofrimento (pela falta de condições de saúde, de orientação por valores positivos, de afecto, de ensino, ou mesmo de condições financeiras), o que aparece aos olhos de quem tem que lidar com esse vazio, é o ideal para consumir. Assim, cada vez mais os angolanos podem se identificar com o que consomem, com o que lhes é oferecido ou proporcionado pelo país. Uma falsa percepção sobre como lidar com a dor e o sofrimento – beber Cuca.”
Nas redes sociais, circula o vídeo de uma unidade militar das Forças Armadas Angolanas (FAA) em parada, empunhando as suas respectivas armas, e animados na entoação do seguinte cântico de bravura militar: “Mãe eu quero Cuca/ mãe eu quero Cuca/ Mãe eu quero Cuca, bem fresca/ Hoje é sexta-feira.”
Então, como pode o Estado angolano delegar seriamente responsabilidades à ministra da Saúde, para o representar na luta contra a bebedeira, quando permite, com toda a soberania, uma campanha que iguala o angolano, incluindo a própria ministra da Saúde, ao álcool produzido pela Cuca?
As FAA são o principal pilar da soberania e da reconciliação nacionais e permite que as tropas entoem, como cântico de bravura militar, a celebração da cerveja Cuca, cujo capital maioritário é do bilionário francês Pierre Castel, secundado pela empresa do MPLA. Durante oito anos, até 2018, o actual chefe do Estado-Maior-General das FAA, general António Egídio de Sousa Santos, exerceu as funções de chefe do Estado-Maior-General adjunto para a área de Educação Patriótica.
Não se pode exigir a esses militares ou aos cidadãos uma consciência diferente quando não têm referência de valores e princípios por parte de quem os lidera.
O mito na objectificação do angolano
A campanha da Cuca, analisada do ponto de vista da semiologia, pode ser estabelecida como a construção de um mito. Como nota Barthes, “o mito não esconde nada: a sua função é a de deformar, não a de fazer desaparecer”. Trata-se do princípio de alienação, de naturalizar uma intenção estereotipada.
Para além do significado linguístico inequívoco, há o significado psicanalítico. O angolano é despido da sua história. A marca de cerveja, qual empresa majestática, assume uma imperialidade que transforma o angolano e a angolana em objecto: uma lata ou uma garrafa de cerveja, um copo de fino, como a imagem publicitária vinca.
A inteligência dos angolanos, que abunda e mal se aproveita para o bem comum, assim como os recursos naturais são anulados. A salvação do angolano é o consumo da cerveja Cuca, que baixou o preço para 200 kwanzas, mais barato do que uma garrafa de água. Não é preciso mudar nada. É preciso apenas beber, afogar a frustração e o desespero no álcool.
Vem a propósito uma expressão muito comum entre comerciantes chineses, que notei com alarme no Kuando-Kubango, depois de a ter ouvido várias vezes quando estes conversavam com cidadãos nacionais: “Angolano é cabeça de água.” Estabelecendo um trocadilho com este estereótipo criado por alguns chineses – que vi causar risadas, de ignorância ou de mera estupidez, entre os ofendidos –, pode-se afirmar que o intento da campanha da Cuca é claro: banalizar os angolanos como cabeças de cerveja.
Estado fraco, cidadãos desorganizados
O Estado angolano é intrinsecamente fraco. Desde a independência, Angola nunca passou por um processo estruturante de abordagem e promoção de valores socioculturais nativos capazes de estimular a validação do conhecimento, da criatividade, da competência, do mérito, da solidariedade e da dedicação ao bem comum. É o reconhecimento e a dignificação desses valores que podem, sobremaneira, contribuir para a mudança de mentalidade em Angola, o principal obstáculo à construção da Nação e ao desenvolvimento humano.
O que nos identifica como angolanos não pode nem deve ser o consumo de álcool, nem sequer os símbolos nacionais, como a bandeira, e partidários. Importa que nos unamos em torno de valores que nos façam aprender que a absoluta maioria dos angolanos tem antepassados que foram escravos, avós que foram colonizados, e que passámos décadas a chacinar-nos uns aos outros pelo poder, pela ganância, pela maldade e a ideologias alheias.
Temos esta história comum de sangue, de sacrifício, que não pode ser em vão. Do sangue vertido dos angolanos temos de construir uma nação que, acima de tudo, valorize e dignifique a vida humana que nasce, cresce e morre neste solo pátrio.
Temos de promover valores de solidariedade e respeito mútuo na transformação e defesa da vida dos outros, dos mais desfavorecidos, para que Angola seja um território de desenvolvimento humano. Essa deve ser a nossa virtude, enquanto cidadãos de bem, na restauração da esperança dos angolanos.
Eu não faço uso de bebidas alcoólicas; e tenho raiva de quem o faz – e de maneira irresponsável! Agora, quanto a interpretação literal que o autor faz da publicidade “Somos angolanos, somos Cuca”, e que considera um inequívoco insulto aos angolanos…bom!
Se interpretarmos a publicidade de forma figurativa ( metáforicamente), concluíriamos fácil e “inequivocamente” que a mesma quer dizer, somos angolanos, consumimos nacional. Ponto!
Há que diferenciar a letra do espírito – a ideia subjacente na publicidade.
Tanta coisa importante se passando e o grande RM preocupado com campanha publicitária de cerveja.
Onde todos sabem tratar-se de uma linguagem com sentido figurado, (ninguém esta a falar que angolando é cerveja).
Que tal falar do Edeltrudes?
Essa reportagem sim estamos todos interessados e sabemos ter muito a dizer.
Poxa, ms que custava VC msm falar de edeltrudes e RM da Cuca? Pq não interessa à ti o q interessa à mim (?). Sua visão e interpretação afigura-se MT bem aki. Este slogan define a angolanidade. É isto q professamos nas igrejas, nos óbitos, nas festas d aniversários d bebés, sem a cuca quase q o país para d vz. Ha sim q s pôr ordem nisso e isto é urgente, tão premente quanto a saúde pública e psicológica do povo angolano.
Sua preocupação então é com campanhas de publicidade de bebidas?
Ta facil então….se o problema mais premente em Angola, que merece “textão” do RM é a campanha publicitaria da Cuca, estamos todos bem! afinal o problema não é assim tão sério lol
Não, não faço eu materias sobre Edeltrudes, já que não sou “jornalista investigativo + Ativista + comentárista + amigo do Presidente”, lol…
Tanta coisa importante se passando e o grande RM preocupado com campanha publicitária de cerveja.
Onde todos sabem tratar-se de uma linguagem com sentido figurado, (ninguém esta a falar que angolando é cerveja).
Que tal falar do Edeltrudes?
Essa reportagem sim estamos todos interessados e sabemos ter muito a dizer….
Com tanta coisa importante acontecendo, o grande RM preocupado com campanha publicitária de cerveja.
Quando todo mundo sabe tratar-se de uma frase de sentido fingurado, muito utilizado na publicidade.
Ninguém esta a dizer que angolando é cerveja, chega a ser ridícula essa interpretação.
Que tal falar do Edeltrudes?
Esse assunto sim nos interessa.
Dai bebida forte aos que perecem e vinho, aos amargurados de espirito;
para que bebam, e se esqueçam da sua pobreza, e de suas fadigas não
se lembrem mais.(Provérbio 31:6-7)
Não é próprio dos reis, ó Lemuel, não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes desejar bebida forte.
Para que não bebam, e se esqueçam da lei, e pervertam o direito de todos os aflitos.(Provérbio 31:4-5)
Muito importante o artigo. Agora resta saber se os tais de deputados e governo reagirão positivamente ordenando imediata e inequivocamente a retirada dessa publicidade que é mais do que incentivar a bebedeira, é rebaixar a dignidade de um povo como aliás refere o artigo. Mas que raio de políticos é que esse país tem!!
oh Rafael, que nojeira de interpretação filosófica, deixa de análises metafisicas o anúncio está bom, numa palavra, “consuma cuca” é nacional e eu gosto’, preocupa te com assuntos importantes, queres dar uma de sábio irmao! Não te fica bem
Cabeças de Cerveja!
Nem acabei de ler…Que bosta de matéria!
Rafa Rafa Rafa! Já lá se vai o bom tempo em que eras de facto o “Maka Angola”. Tem cuidado homeboy!
Bem dito, Rafael Marques agora fala de cerveja, Há coisas mais importantes que o Maka Angola, poderia ver por exemplo a estrada Panguila Kissomera que Governadora do Bengo veio a publico dizer que iria terraplanar como parte do PIM, não se deram o trabalho de investigar.
Agora esta preocupado com publicidade, isto é marketing comercial ninguém se identifica com a tal publicidade ao menos que realmente goste de Cuca.
Concordo com muitos comentários acima de o Maka Angola ja não a mesma qualidade e rigor de antes, caiu na mesmice de todos.
Cumprimentos
MF
Em 2012 no Facebook escrevi o seguinte sobre esta campanha publicitária…
Protesto!
Na sua publicidade a CUCA afirma que “conquistou o coração dos angolanos”.
O coração?
Tudo menos o coração.
Aceito que tenha conquistado a goela, a boca, a língua, os beiços e até os olhos.
Mas o coração não e não.
A partir de hoje passo a beber a Cuca sob protesto…
PS- É que se não protestarmos agora, no próximo aniversário vamos ter de ouvir a CUCA dizer que nos conquistou o cérebro…
PS1- Esqueci-me de apontar o nosso fígado como fazendo parte das conquistas da Cuca.
PS2- Desisto deste protesto se a Cuca retirar da sua publicidade o coração e colocar no seu lugar a palavra simpatia.
Reginaldo Silva
Meus senhores, nestas discussões não nos devemos perder em querelas. Tentemos focar-nos no tema em discussão. O Sr. Marques, levanta aqui uma questão muito séria! O consumo de álcool em Angola tomou proporções muito preocupantes. (1)Na esfera mental, aliena a mente da nossa juventude das questões mais importantes da sua própria existência, incita à pregiça, imoralidade, ao sexo desprotegido e promíscuo, a vagabundagem, violência e ao crime em geral, fraco aproveitamento escolar, baixa auto-estima, etc.. (2)No plano somático, há os problemas da impotência sexual e desfunções erecteis, problema do fígado, etc.. Considerando que a juventude é a maioria da população do país, podemos dizer que esse foco da nossa liderança na produção e venda despodurada de álcool, está a contribuir para o surgimento, no futuro, de gerações de angolanos muito débeis, física e mentalmente, que poderão muito fácilmente ser dominados e estuprados por estrangeiros. Hoje, ouve-se com frequência que a mulher angola vai para a cama por algumas cucas! Esta publicidade vergonhosa mostra aos estrangeiros, que a nossa liderança só tem visão e estratégias para o roubo, a poligamia, e o enriquecimento fácil, que ela é fácilmente corruptivel.
O Sr. Marques não é a solução dos problemas do país, nós o povo em geral e os intelectuais em particular, é que somos covardes, perante este governo incompetente, corrupto, ditatorial e sem patriotismo. Temos medo de sair á rua para nos manifestar e exigir os nossos direitos, escondemo-nos atrás dos nossos telemóveis e das redes sociais, e achamos que Rafael Marques é que tem segurar o bicho pelos cornos, por nós! Vocês, EU, nós…somos todos uns covardes!
Como se diz por ai perdemos mas um tropa .. RM materia mesmo é esta ??