O Banquete Supremo do Joel

Amélia Jumbila Usaú Leonardo Machado deve ser uma pessoa encantadora. Juíza com um ano de experiência, só pôde assumir funções depois de ter sido repescada, uma vez que as suas notas na formação para a magistratura tinham sido demasiado baixas. Perante estes sinais de excelência, foi alegadamente escolhida pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial de Angola para frequentar uma formação de formadores em Portugal a partir de 8 de Janeiro próximo. Irá portanto ganhar competências para formar outros juízes. Ou não será assim?

Aparentemente, a formação oferecida a Amélia Leonardo corresponde a um curso de um ano na Universidade de Coimbra. Poderíamos começar por discutir por que razão se insiste, nos tempos do combate à corrupção em Angola, em formações académicas em Portugal, país que se confronta com inúmeros problemas nessa área, não sendo certamente um paradigma a seguir. Mas deixemos esse tema para outra ocasião.

A deslocação da juíza Amélia Leonardo levanta uma questão bem mais grave: a do nepotismo e a violação muito grave da Lei da Probidade Pública por um supremo magistrado.

Amélia Leonardo é filha do presidente do Tribunal Supremo e presidente do Conselho Superior da Magistratura, juiz conselheiro Joel Leonardo. Fontes fidedignas desse Conselho asseguram-nos de que não existiu qualquer deliberação do Conselho escolhendo Amélia como destinatária de tal formação no estrangeiro. E que, em vez disso, a escolha resultou de uma decisão pessoal de Joel Leonardo.

Além de Amélia Leonardo, irão também frequentar o curso na lusa Atenas os juízes Daniel Modesto, Antónia Damião (filha do jurista João Damião, dono do edifício comprado para instalar o Tribunal da Relação de Luanda), Joaquim Salombongo, Pedro Pascoal, Nazaré António. Tais nomes constam de uma relação nominal endereçada por Joel Leonardo ao procurador-geral da República, em 28 de Setembro de 2020, através do ofício 1000/006/Gab.J.C.Pres.CSMJ/2020.

Alegadamente, quase todos os indicados têm fortes laços com Joel Leonardo, seja por terem contribuído para a sua designação, seja por estarem ligados à compra de edifícios para serem transformados em tribunais, seja por serem sobrinhos ou amigos de longa data.

Não se vislumbra um critério válido e consistente para a designação dos juízes a receberem formação em Coimbra, nem se sabe se existiu alguma forma de selecção, concurso, prémio ou outra.

O que se sabe é que não houve nenhuma deliberação do plenário do Conselho Superior de Magistratura Judicial e tudo se passou ao nível do gabinete do juiz presidente Joel Leonardo.

A ser assim, estamos perante uma manifesta violação da Lei da Probidade Pública (Lei n.º 3/10, de 29 de Março). Nos termos do artigo 15.º, n.º 2, c) da referida Lei, consideram-se agentes públicos – logo, abrangidos pelas disposições deste normativo – todos os “os magistrados judiciais e do Ministério Público de todos os tribunais, sem excepção”. Ora, o artigo 28.º proíbe que os agentes públicos intervenham na preparação, decisão e execução dos actos e contratos quando, por si ou como representante de outra pessoa, nele tenha interesse seu cônjuge ou parente na linha recta (cfr. artigo 28.º, n.º 1, b).

Dito por palavras simples, um pai que seja agente público não pode intervir em nenhum acto ou contrato referente a um interesse da sua filha. Um presidente do Tribunal Supremo não pode decidir que a sua filha vai fazer uma formação em Portugal por conta do órgão público por si dirigido.

Além de não poder decidir, não poderá sequer participar na execução do acto. Nesse caso, nem sequer pode mandar cartas ao procurador-geral da República sobre o tema ou orientar o seu secretário executivo para comunicar com o Tribunal Provincial de Luanda acerca do mesmo assunto. É o que diz a lei, e a lei é clara.

Tudo indica, portanto, que Joel Leonardo violou a Lei da Probidade Pública, especificamente o estipulado no seu artigo 28.º. Agora, há que retirar consequências. A lei também não deixa dúvidas. O artigo 28.º n.º 2 estipula que a violação das normas sobre impedimento, por acção ou omissão negligente ou dolosa, dá lugar a responsabilização disciplinar e criminal.

Nesse sentido, seguir-se-á forçosamente a abertura de um inquérito disciplinar pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, que deverá averiguar exactamente o que se passou e, caso se verifique que Joel Leonardo violou de forma grave a lei, deve-lhe ser aplicada a pena de demissão.

No mesmo âmbito, o procurador-geral da República deve abrir o inquérito competente para averiguar se existe alguma responsabilidade penal, designadamente prática de crimes de prevaricação ou abuso de poder (artigos 33.º e 39.º da Lei da Probidade Pública).

Sabemos que noutros tempos este tipo de actuação era tolerada e não mais do que um encolher de ombros resultaria da sua denúncia. Era tacitamente aceite que os titulares dos cargos públicos tinham direito a retirar disso as maiores vantagens pessoais que conseguissem.

Contudo, queremos acreditar que o nepotismo e a corrupção são práticas do passado. Queremos acreditar no presidente João Lourenço e nos seus discursos e iniciativas contra a corrupção.

Vislumbram-se, actualmente, dois grupos com muita influência na sociedade civil: os reformistas e os radicais. Os reformistas vêem uma possibilidade de evolução positiva sem rupturas sangrentas através da política de João Lourenço; acham que é possível reformar o sistema corrupto por dentro e dispõem-se a contribuir para este caminho. Já os radicais não acreditam em nada que não o derrube pela força do sistema, antecipando uma luta destruidora.

Ora, a tolerância perante os comportamentos como o de Joel Leonardo só minimizará as esperanças dos reformistas e reforçará os radicais e saudosistas do regime de JES, que contam com a indignação das ruas e com a manutenção dos abusos.

É por isso que este caso tem de ser exemplar na sua investigação e nas suas conclusões. Não podemos continuar a ter práticas nepotistas e contrárias à lei por parte dos mais altos dirigentes dos órgãos de soberania.

Se para Joel Leonardo o seu banquete, o festim da pilhagem e da corrupção, começa a ganhar animação agora no Tribunal Supremo, para a sociedade a música da impunidade tem de ser parada imediatamente. Este caso deve ser o fim do banquete no Tribunal Supremo.

Ficamos à espera.

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