Agricultores do MPLA no Kuando-Kubango

O Governo Provincial do Kuando-Kubango, através do Gabinete Provincial da Agricultura, Pecuária e Pescas, emitiu, a 28 de Dezembro passado, um extenso comunicado de imprensa em que sou visado. Sou tratado como “sorrateiro”, “irresponsável”, “emocional”, de ter cometido “pura blasfémia” entre outros nomes e atributos insultuosos. Esse comunicado respondia a um breve comentário, de menos de dois minutos, feito por mim, no programa “Conversas Entrecruzadas” da Rádio MFM, sobre a distribuição de insumos (sobretudo fertilizantes e sementes) para agricultura familiar na referida província. A lista de beneficiários, pontificada por entidades do Governo Provincial e do MPLA local, levou-me a criticar tal distribuição que, conforme o meu comentário, não deveria ser designada de agricultura familiar, mas de “agricultura partidária”.

Falei também de um vendedor de insumos que, a seguir, os recebeu de forma gratuita do governo. Sobre este assunto, versarei noutra ocasião.

Quais são os factos em que me baseei para proferir o referido comentário à MFM?

A lista de insumos consta da “proposta do plano de distribuição de sementes de milho, feijão e fertilizantes” do director do Gabinete Provincial da Agricultura, Pecuária e Pescas, o engenheiro agrónomo António Pereira Vicente. Essa proposta, datada de 4 de Novembro passado, foi devidamente homologada pelo governador provincial, Júlio Marcelino Vieira Bessa.

Da lista dos agricultores beneficiários do processo de distribuição gratuita de fertilizantes e sementes, destacamos as seguintes individualidades: dois ex-vice-governadores provinciais e actuais membros do Comité Provincial do MPLA, Sara Luísa Mateus e Simão Baptista. O Maka Angola já escreveu sobre os negócios dessas duas individualidades com as autoridades locais. Têm posses para pagar do seu bolso. A primeira recebeu 250 quilos de fertilizante NPK e o segundo 150. Cada um recebeu 50 quilos de sulfato de amónio e 25 de milho.

A Fazenda Vidigal, do recém-falecido administrador municipal do Menongue, Júlio Vidigal, foi contemplada, na lista de insumos, com tuas toneladas de NPK, 500 quilos de sulfato de amónio e 100 quilos de sementes de milho. Fonte ligada à Fazenda justificou esta benesse com o facto de o malogrado ter instalado dezenas de famílias destituídas na sua fazenda, servindo os insumos como garantia de subsistência dessas famílias.

Vários membros do secretariado e do Comité Provincial do MPLA, assim como funcionários, também constam da lista como contemplados na “relação nominal dos agricultores do Menongue com acesso à distribuição directa de insumos agrícolas”, conforme nota do director provincial da Agricultura. Para conhecimento dos leitores, segue-se uma lista dos nomes dos beneficiários dos insumos gratuitos, os respectivos cargos e o que receberam em quilos.

Nome/agricultorCargoNPKMilhoAmóUreiaFeijão
Manuel FrenessaSecretário para os Assuntos Eleitorais15050   
Manuel Samba  Secretário do D. Info e Propaganda150   50  
Rosa CacuhuDeputada e 1ª secretária da OMA150    
Jacob FilipeChefe da Secretaria150   50
Albertina Manuel Dumba2ª secretária da OMA150    
Maria Isabel FerroEx-deputada, chefe de Finanças150   50
Miguel PopularEx-administrador do Menongue2002550  
João ChambaEx-sec.-geral do Governo Provincial2502550 50
Sr. RodriguesEx-assessor do governador  2002550  
Armando NdalaEx-deputado250 50  
Sr TchindjengueMembro do C.P.150 50  
Ernesto DomingosChefe do Património2002550 50
Agostinho KennedyFotógrafo do C.P.150   50
Raimundo Manuel KingaFuncionário do património150 50  
Eduardo Sabalo NenéFuncionário150   50

Observemos agora os nomes dos ilustres funcionários do governo provincial do Kuando-Kubango constantes na lista de beneficiários dos insumos, na sua qualidade de agricultores privados.

Nome/agricultorCargoNPKMilhoAmóUreiaFeijão
João YamboDirector prov. da Comunicação Social1502550 50
Antunes HuamboDirector provincial dos Transportes150 50  
Júlio BravoDir. prov. do Ordenamento e Ambiente20010050 50
Kazavubo KanhimeDirector prov. de Educação2002550  
Elísio MakaiChefe de Inspecção2502550  
Débora Ferro VilarDir. Prov. INE1502550 50
Elias Matuca JoséChefe de Depto. Da Comunicação Social1502550  
       

Há ainda algumas figuras com cargos importantes também constantes na lista elaborada pela direcção provincial da Agricultura, que inclui, conforme aí consta, o procurador (Miguel).

Nome/agricultorCargoNPKMilhoAmóUreiaFeijão
Sérgio Kahuti Canhanga  Presidente da Comissão P. Eleitoral30010050 50
Procurador (Miguel)Procurador junto do SIC35010050  
Ondina Chiaca DalaDiretora da maternidade/mEMBRO da Comissão do mpla150   50

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), cinco dos nove municípios do Kuando-Kubango apresentam uma incidência de pobreza acima dos 90 por cento. Ou seja, pelo menos 9 em cada 10 pessoas são “multidimensionalmente pobres”. Os dados estatísticos de pobreza multidimensional pelos cinco municípios são os seguintes: Cuangar (92%), Rivungo (94%), Cuchi (97%), Cuito Cuanavale (97%) e Nancova (97%).

É inaceitável que, numa província com este nível quase absoluto de pobreza, os dirigentes locais se apropriem de bens agrícolas que se destinam a auxiliar camponeses pobres, pessoas que efectivamente precisam de ajuda para sobreviver.

Sobre a distribuição de insumos entre os dirigentes do MPLA e altos-funcionários do governo provincial, a administração de Júlio Bessa dá “a conhecer à opinião pública que os insumos recebidos também a título devolutivo pelos pequenos produtores (funcionários públicos, militares, líderes religiosos e todos os outros que possuem pequenas quintas e lavras), no universo geral não representam mais do que uns desprezíveis 2%”.

Temos então um governo provincial a tratar bens pagos com o dinheiro dos contribuintes e concedidos a funcionários públicos como sendo uns “desprezíveis 2%”. Há muitos dirigentes a serem julgados e alguns já condenados por terem “mexido” em muito menos do que “desprezíveis 2%” de bens que tinham sob sua gestão. Essa expressão apenas confirma a noção que quem dirige a província tem do erário público. O que sai do bolso dos contribuintes, o povo, nunca é desprezível.

Ademais, é um acto discriminatório o Governo Provincial estar a distribuir insumos para dirigentes locais do MPLA, excluindo os dos outros partidos políticos. Ou afirmar-se-á que só os do MPLA sabem fazer agricultura? Da lista constam indivíduos que têm lucrado bastante com negócios e negociatas feitos com o Governo Provincial e as administrações municipais e que podem muito bem pagar do seu bolso, para os seus projectos agrícolas, na qualidade de “pequenos produtores”.

Além do mais, estes comportamentos, conforme observação de vários juristas, poderão consubstanciar a prática do crime de tráfico de influências previsto e punido pelo artigo 41.º da Lei sobre a Criminalizaçao das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais. Poderá existir também uma violação do artigo 28.º da Lei da Probidade Pública, que proíbe a intervenção em assuntos em que exista algum interesse relevante, directo ou indirecto, o que pode ser o caso, atendendo às conexões funcionais e politico-partidárias estabelecidas. Este é o mesmo contexto que leva à suspeita de tráfico de influências.

Para lá das questões legais, recuemos no tempo para entender essa lógica exclusivista de benefícios para os dirigentes do Estado e do MPLA. Desde a independência, em 1975, os dirigentes têm sempre uma justificação para o seu acesso privilegiado aos benefícios em detrimento dos governados. Foi assim que nas piores crises económico-sociais, como nos anos 80, a classe dirigente se atarefou em estabelecer as lojas especiais, dos dirigentes e diplomatas, onde os privilegiados tinham acesso exclusivo à boa alimentação, bebidas e outros bens, com o argumento esfarrapado de que tal serviria para aumentar a assiduidade e produtividade destes. Com a pressão, surgiram então as lojas complementares, para os responsáveis intermédios, enquanto o povo se quedava com as lojas do povo de dois quilos de arroz e uma lata de óleo por mês.

Nos anos 90, promoveu-se bastante a ideia da criação da burguesia nacional, como justificação para o enriquecimento desenfreado de membros da classe dirigente e seus eleitos. No século XXI, apurou-se essa ideia, pela boca do próprio José Eduardo dos Santos, para a “acumulação primitiva de capital” (vulgo, pilhagem do país).

Nem os ventos de mudança e a luta anticorrupção do presidente João Lourenço parecem servir de freios a essa cultura de abuso de poder.

No comunicado que emitiu em resposta aos meus comentários na rádio, o Governo Provincial do Kuando-Kubango diz que “fala em defesa da honra e dignidade profissional” dos seus funcionários e pede que eu o divulgue, tendo usado também para esse efeito o diário estatal Jornal de Angola. Faremos melhor. Essa honra e dignidade será mais bem lavada nas barras do tribunal.

Propomos a investigação do caso pela Procuradoria-Geral da República, para que se faça justiça.

No Kuando-Kubango, a farra sobre percentagens “desprezíveis” do erário público parece continuar.

Comentários