Novo Código Penal: Alguns Perigos à Espreita

A Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro, que aprova o Código Penal foi publicada no dia da comemoração da independência nacional. Finalmente, após 45 anos, Angola tem o seu próprio Código Penal e deixa de se reger por uma lei portuguesa do século XIX. Este mero facto é de aplaudir e de registar como muito positivo. Daqui a 90 dias, em Fevereiro de 2021, o Código entrará em vigor em todo o país.

O novo Código Penal angolano é composto por dois livros e 473 artigos. O primeiro livro dedica-se à parte geral do direito penal, isto é: as condições em que há crime, em que este pode ser afastado, e como deve ser punido, englobando os artigos 1.º a 146.º. O segundo livro (artigos 147.º a 473.º) estabelece a parte especial, identificando os crimes concretos que são puníveis e as suas penas (homicídio, furto, etc.).

DESCOLONIZAÇÃO NO DIREITO PENAL?

Na sua essência dogmática, o Código segue de perto o Código Penal português de 1982. Não é exactamente igual, tendo alguma diversidade, mas a estrutura e o pensamento técnico subjacente são os mesmos: o Código Penal angolano é o Código Penal português adaptado. Basta ver que o artigo 1.º n.º 1 é exactamente igual: “Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática.” Por sua vez, o n.º 3 do mesmo artigo 1.º contém uma pequena diferença. Enquanto na lei portuguesa se determina que não é permitido recorrer à analogia para qualificar um facto como crime, já a nova lei angolana esclarece que não é permitido o recurso à analogia nem à interpretação extensiva para se qualificar um facto como crime. Claramente, a solução angolana é melhor e mais protectora dos direitos fundamentais e da presunção de inocência. Qualquer profissional do Direito sabe bem os malabarismos jurisprudenciais que muitas vezes são feitos para qualificar determinado raciocínio como interpretação extensiva e não analogia, e assim permitir a criminalização. A solução angolana evita essas actividades interpretativas.

É apenas nos detalhes que se encontram diferenças entre os códigos português e angolano. A primeira questão que este novo Código coloca é, precisamente, sobre a sensatez de tal cópia adaptativa.

Poder-se-á argumentar que é uma escolha pragmática. Na verdade, a maior parte dos juristas angolanos ou estudou em Portugal ou utiliza livros e autores portugueses. A jurisprudência angolana cita geralmente a sua congénere portuguesa, bem como a doutrina lusófona. Os novos juízes desembargadores angolanos tiveram a sua formação assegurada por juízes desembargadores portugueses. Alguns dos principais manuais de direito constitucional angolano são escritos por portugueses, como é o caso das obras de Bacelar Gouveia ou Jónatas Machado. Mesmo o mais famoso jurista angolano publicou o seu livro fundamental de Direito Administrativo em parceria com o professor Freitas do Amaral. Assim sendo, há um rio profundo de cultura jurídica luso-angolana onde é fácil beber.

No entanto, poder-se-á defender uma visão oposta. Esta permanente ligação à cultura legal portuguesa menoriza os juristas angolanos e impede-os de desenvolver um pensamento próprio, limitando-se a copiar com maior ou menor rigor, maior ou menor adaptação as regras e doutrinas portuguesas, que, por sua vez, são trazidas, geralmente, de uma corrente germanófila preponderante em Portugal. No fim de contas, em Angola acaba por se aplicar direito alemão… No fundo, a colonização do Direito permanece.

Fica a dúvida se não se deveria começar a investigar outros direitos e outras famílias jurídicas: os vizinhos Botswana e Namíbia, que têm países funcionais, o Brasil, que se inspira em parte nos Estados Unidos, e o direito anglo-saxónico, que parece mais flexível e actual para confrontar os desafios da contemporaneidade.

Terá este Código Penal sido uma oportunidade perdida de “descolonizar” o direito angolano?

AMEAÇAS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

É óbvio que no espaço de uma coluna não se consegue fazer um comentário sistemático que abranja todos os assuntos importantes levantados pelo novo Código Penal. Consequentemente, realizam-se apenas umas breves referências a algumas especificidades esparsas que uma primeira leitura suscitou.

Uma norma que traz preocupação a quem escreve para o público é o artigo 224.º, que estabelece o Crime de Abuso de Liberdade de Imprensa. Nos termos deste preceito, comete este crime e poderá ser punido com pena de prisão de até seis meses quem por meio da comunicação social, entre outros, proceder à promoção dolosa de campanha de perseguição e difamação, através da divulgação sistemática e contínua de informação falsa sobre factos, atitudes, desempenho profissional administrativo ou comercial de qualquer pessoa (artigo 224.º, 1. C). Quem tem experiência dos tribunais angolanos facilmente percebe que este tipo de cláusula tão alargada facilmente pode levar qualquer jornalista à barra do tribunal e ser condenado. Também a alínea d) do mesmo artigo, que pune quem divulgar textos, imagens ou som obtidos por meio fraudulento, ou a alínea e), que sanciona igualmente quem publicar intencionalmente notícias falsas, são regras que levantam muitas preocupações para a liberdade de imprensa. É preciso não esquecer casos como o das notícias publicadas no ano passado pelo Maka Angola, que atribuíam a propriedade de várias empresas a Manuel Vicente, Kopelipa ou Dino e que na altura foram apelidadas de falsas; hoje, é a própria Procuradoria-Geral da República que lhes exige a devolução desses patrimónios.

No ambiente em que a corrupção vicejou, é muito difícil distinguir, sem amplo debate público, o que é verdadeiro e falso, sobretudo na área económico-financeira. Esta norma, a pretexto da punição das notícias falsas, pode punir a liberdade de imprensa e o combate à corrupção. Não há como negá-lo: o artigo 224.º do novo Código Penal é perigoso.

Na mesma óptica de normas perigosas para a liberdade pelo seu carácter vago e indeterminado, temos o artigo 322.º, que criminaliza a propaganda contra a defesa nacional e as forças armadas. O número 1 do referido artigo estabelece que quem divulgar afirmações falsas ou distorcer factos verdadeiros e com isso puder perturbar a acção das forças armadas é punido com pena de prisão até três anos. Note-se que estes actos podem acontecer em situação de paz ou guerra (cfr. n.º 2 do artigo 322.º). Temos aqui outra porta escancarada para punições por mero exercício da liberdade de expressão. Ao contrário do artigo sobre o abuso de liberdade de imprensa, neste caso, nem estão em causa apenas as denominadas informações falsas, mas informações verdadeiras distorcidas. O que é isto?

Mais uma vez, o conhecimento que fomos acumulando sobre o funcionamento do sistema judicial em Angola faz temer o pior perante este género de normas amplas e vagas, que dão poder à PGR e aos magistrados judiciais para produzir narrativas que facilmente se enquadrem formalmente nestas tipificações criminais.

DEVOLUÇÃO DE ACTIVOS E PERDÃO

Um outro tema tão relevante como o da liberdade de expressão e de imprensa é o do efeito da recuperação de activos.

Há aqui uma grande novidade expressa pelo artigo 399.º do Código Penal epigrafado “Restituição ou reparação”. O n.º 1 é claro: “Quando a coisa furtada for restituída ou o prejuízo causado pelo furto inteiramente reparado, até a publicação da sentença ou acórdão em 1.ª instância, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro.” Esta norma é fundamental, pois termina com as dúvidas imensas existentes sobre os efeitos da devolução de activos.

Existe uma mudança efectiva da orientação legislativa. Quem devolver o que desviou (em fase de primeira instância) vê extinta a responsabilidade criminal. Em termos simplistas, quem devolve activos tem perdão.

Tal norma aplica-se aos casos de furto, mas também de abuso de confiança, apropriação ilegítima de bens de empresas do sector público (artigo 408.º), dano e dano de coisas com valor e interesse público (artigo 413.º), e a todas as burlas (artigo 423.º), entre outros casos.

Curiosamente, os crimes de peculato (artigo 363.º), participação económica em negócio (artigo 364.º) e tráfico de influências (artigo 366.º) não beneficiam da benesse do artigo 399.º, pelo menos de forma expressa. Estes foram alguns dos temas levantados numa primeira leitura do Código Penal. Paulatinamente, iremos estudando com atenção o novo Código e chamando a atenção para os seus aspectos mais relevantes, quer positivos, que os há, quer negativos, que também os há.

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