Um Juiz Fantasma no Tribunal Supremo

Em Outubro de 2019, o juiz conselheiro Rui Ferreira apresentou a sua demissão como presidente do Tribunal Supremo. Possivelmente, fê-lo tarde demais, depois de deixar envolver o mais alto cargo da magistratura judicial em polémicas desnecessárias. Mas a verdade é que o fez. Contudo, na mesma altura não se demitiu nem pediu o afastamento da função de juiz conselheiro, que é, obviamente, diferenciada da presidência do Tribunal. Logo, deveria ter-lhe sido atribuído um lugar numa câmara de adjudicação do Tribunal e deveriam ter-lhe sido distribuídos processos, como a qualquer outro juiz conselheiro.

Contudo, nada disso aconteceu. Rui Ferreira não começou a exercer nenhuma tarefa, embora formalmente não tenha sido afastado da magistratura judicial, nem do Tribunal Supremo. O juiz existe, mas desapareceu. No momento em que se publica este texto, não surge, na página oficial digital do Tribunal Supremo, qualquer referência a Ferreira, nem como juiz no activo, nem como juiz jubilado (ver aqui e aqui).

Como se diz em Direito, é um tertium genus: nem pessoa, nem coisa. Um terceiro tipo de juiz até aqui desconhecido: o juiz fantasma.

Por estas razões, não se compreende a razão que leva o presidente do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial, juiz conselheiro Joel Leonardo, a não agendar uma discussão sobre a deliberação que se impõe junto do plenário do Tribunal Supremo ou do Conselho Superior da Magistratura Judicial, do dossiê relativo às faltas injustificadas (durante mais de 12 meses consecutivos) cometidas pelo ainda juiz conselheiro Rui Constantino da Cruz Ferreira, cujo comportamento resvala, juridicamente falando, para a figura de abandono de lugar.

Vejamos os detalhes:

Segundo o Decreto Presidencial n.º 66/18, de 2 de Março, Rui Ferreira foi nomeado juiz conselheiro do Tribunal Supremo. Mais tarde, acabaria por ser escolhido e empossado pelo presidente da República nas funções de juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo, para um mandato de sete anos, não renovável. Como vimos, o mandato foi interrompido no dia 3 de Outubro de 2019, dia em que Rui Ferreira apresentou e comunicou ao plenário do Tribunal Supremo e do Conselho Superior da Magistratura Judicial a sua renúncia do cargo. A renúncia, como se sabe, foi apenas do cargo de presidente do Tribunal Supremo, e não do de juiz conselheiro deste Tribunal. Ou seja, Rui Ferreira continuou a ser, por força da Lei e da Constituição, juiz conselheiro do Tribunal Supremo. Daí que devesse estar vinculado a uma das suas câmaras, o que não aconteceu até ao presente momento.

O que sucedeu posteriormente foi que Rui Ferreira deixou de comparecer aos serviços, sem qualquer justificação formal, a partir do dia 3 de Outubro de 2019, compaginando assim uma grave infracção disciplinar em termos da relação jurídico-laboral estabelecida com a instituição Tribunal Supremo. Neste sentido, estabelece o art.º 70.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 7/94, de 29 de Abril, o seguinte: “Os Magistrados Judiciais e os do Ministério Público estão sujeitos ao regime disciplinar estabelecido no presente Estatuto.” Determina ainda o referido diploma, no seu art.º 71.º, o conceito de infracção disciplinar: “São infracções disciplinares todos os comportamentos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, ainda que meramente culposos que, por omissão, violem os deveres profissionais e os que, pela sua repercussão social, sejam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.”

Ao estar ausente do Tribunal Supremo, seu local de trabalho, há um ano, sem a necessária justificação, o Dr. Rui Constantino da Cruz Ferreira violou, reiteradamente, o dever de assiduidade previsto no n.º 3 do art.º 4.º do Regime Disciplinar aplicável aos funcionários e agentes administrativos, aprovado pelo Decreto n.º 33/91, de 26 de Julho, ao qual remete o art.º 70.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público. Com efeito, o citado juiz conselheiro encontra-se na situação de Abandono de Lugar, pois, conforme dispõe o art.º 102.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público, levanta-se o Auto por Abandono “Quando um Magistrado deixe de comparecer ao serviço por 15 dias, manifestando a intenção de abandonar o lugar, ou faltar injustificadamente durante trinta dias úteis seguidos.”

Esta norma indicia, entre as situações de abandono, aquela que ocorre quando um magistrado faltar injustificadamente durante trinta dias úteis seguidos.

Outro aspecto relevante nesta análise tem a ver com o facto de o citado juiz conselheiro continuar a beneficiar de todos os direitos e regalias devidos aos juízes conselheiros em exercício de funções – o que é um acto condenável quer do ponto de vista jurídico, quer do ponto de vista social.

Neste sentido, e nos termos do n.º 1 do art.º 184.º da Constituição angolana, estão reunidos todos os pressupostos para que o Conselho Superior da Magistratura Judicial, órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, proceda em conformidade, isto é, levante o referido “Auto por abandono”.

Assim sendo, não se percebe por que razão o presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, não submeteu o assunto a discussão e decisão, quer ao plenário do referido Tribunal quer ao plenário do Conselho Superior da Magistratura Judicial, passados que são mais de 12 meses desde a data em que Rui Ferreira deixou de comparecer ao local de trabalho, ou seja, ao Tribunal Supremo.

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