Recuperação de Activos no País dos Sovietes

Os países não vivem num vácuo, a história tem um peso determinante na sua evolução e nas suas opções. Em Angola, isso é visível quer na relação torturada estabelecida com Portugal, quer na influência duradoura das práticas soviéticas importadas a partir do final da década de 1970. A este propósito, ainda agora se verifica que o discurso presidencial sobre o estado da Nação não é mais do que um discurso sobre o estado dos ministérios, traduzindo uma pura e dura visão soviética acerca da organização política de uma sociedade.

A mesma influência soviética se faz sentir na estruturação das medidas da chamada luta contra a corrupção, centrando-a, numa perspectiva bem marxista, na recuperação de activos. Mais uma vez, a infra-estrutura determina a super-estrutura, a pessoa é avaliada não pelos seus actos, mas pela sua participação nos modos e relações de produção.

Esta sovietização da luta contra a corrupção é surpreendente e merece uma atenção crítica, pois tem duas consequências que iremos abordar de seguida: a “coisificação” do direito penal e a “sovietização” de economia.

A “COISIFICAÇÃO” DO DIREITO PENAL

O foco da luta contra a corrupção está na recuperação de activos. Basta ver que a legislação nova que acompanhou o início dessa luta se dedica essencialmente ao tema, designadamente, a Lei n.º 9/18, de 17 de Maio, Lei do Repatriamento de Recursos Financeiros e a Lei n.º 15/18, de 21 de Novembro, Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens.

Do mesmo modo, no recente discurso do presidente da República sobre o estado da Nação, ao abordar o combate à corrupção, as suas palavras mais significativas foram: “No âmbito do processo de recuperação de activos, o Estado já recuperou bens imóveis e dinheiro no valor de USD 4.904.007.841,82, sendo USD 2.709.007.842,82 em dinheiro.” (p. 8)

Finalmente, é de sublinhar a ampla cobertura que tem sido dada à entrega ao Estado do grupo MediaNova e dos supermercados Kero, entre outros (ver aqui e aqui).

Como nota preliminar, convém referir que não se percebe exactamente como é que essa cedência ao Estado se opera em termos jurídicos.

Qual o acto que consagra a cedência? Os generais Kopelipa, Dino e Manuel Vicente e outros associados doaram as acções das empresas ao Estado? Entregaram-nas como pagamento de alguma dívida? E o que acontece se as empresas tiverem mais dívidas do que rendimentos, i.e., se estiverem falidas?

Não é claro o enquadramento legal, nem a previsão do futuro destas empresas. Deveria existir uma lei prévia, possivelmente com respaldo constitucional, para adequar devidamente estas entregas.

Assim, como está a ser feito, parece que tudo pode ser desfeito com uma “canetada” presidencial: basta mudar o presidente ou o seu “animus” (intenção de agir).

Contudo, a questão mais importante do ponto de vista do direito é acerca do que representa erguer estes procedimentos como sendo centrais no combate à corrupção. Obviamente, a recuperação de activos é um dos objectivos dessa luta contra a corrupção, mas não é a única. O combate à corrupção tem, pelo menos, outros dois objectivos: evitar a corrupção futura e aplicar justiça aos perpetradores da corrupção passada.

Em resumo, poderemos afirmar que, do ponto de vista do direito penal, o combate à corrupção tem três objectivos: justiça para os corruptos, prevenção de futura corrupção e recuperação de activos desviados. Centrando-se o combate apenas na recuperação, esse combate fica focado nas coisas, e não nas pessoas, descurando os outros dois objectivos.

Em relação a evitar que no futuro exista mais corrupção, a recuperação de activos acaba por ter um efeito contrário; possivelmente aumentará a corrupção. Os eventuais perpetradores sabem que, se forem apanhados, o que lhes acontece é terem de devolver alguns bens. Assim, tratam de acumular o maior número de bens possível, sabendo que uma parte poderá ser devolvida. Em vez de 100 milhões de dólares, passam a querer 150 milhões de dólares, incorporando nos seus cálculos a possibilidade de terem de devolver 50 milhões no futuro. Portanto, o foco exclusivo na recuperação não evita que haja corrupção no futuro, pelo contrário.

Naquilo que diz respeito ao passado, também não é liminar o que acontece. O que pensar daqueles que durante décadas, através dos seus actos, colocaram em causa o desenvolvimento de Angola, condenaram a população à pobreza e agora, ao devolverem uma parte do seu espólio, obtêm a absolvição legal e social?

Alguns, como Marcolino Moco parecem defender esta via. Um arrependimento efectivo adicionado à devolução de bens deve ser o suficiente para que se considere ter sido realizada justiça em relação ao passado e o assunto ficar encerrado.

Os referidos Isabel dos Santos, Kopelipa, Dino, Manuel Vicente e muitos outros fariam um acto de penitência pública, devolveriam bens e beneficiariam de uma amnistia geral e completa.

Se for esta a via escolhida, deve ter uma fundamentação legal, possivelmente constitucional, aprovada pelos representantes do povo. No fundo, deveria ser criado um mecanismo semelhante à famosa Comissão de Verdade e Reconciliação que foi adoptada na África do Sul de Nelson Mandela após o apartheid. Pode ser que funcione, pode ser que não. O que não pode ser é tomarem-se as decisões à socapa e não se perceber o que acontece.

A corrupção não foi e não é apenas uma “coisa”. Foi um acto de pessoas e pode continuar a ser um acto de pessoas, e não se pode retirar a dimensão pessoal, humana, reduzindo tudo a milhões em devolução. Tratar essas pessoas com justiça, encontrando um acordo de viabilização do futuro do país sem mais contendas, até pode ser viável, mas tem de ser explicitamente assumido.

O que não pode ser feito é transformar o direito penal numa mercearia. Isso, no final de contas, acaba por condenar o combate à corrupção ao fracasso.

A SOVIETIZAÇÃO DA ECONOMIA

A par da “coisificação” do direito penal, está em curso, algo paradoxalmente, uma sovietização da economia angolana, em que o Estado vem tomando largas partes da economia privada.

É paradoxal e irónico, porque, ao mesmo tempo, o executivo tem anunciado a intenção de privatizar uma boa parte da economia estatal através do ProPriv. Na verdade, de um lado privatiza pequenas partes da economia (sobretudo fazendas e pequenas unidades industriais) e do outro torna-se proprietário de largos pedaços da mesma economia. Como referiu o presidente da República no discurso do estado da Nação, o Estado tem agora “USD 2.194.999.999,00 em bens imóveis, fábricas, terminais portuários, edifícios de escritório, edifícios de habitação, estações de rádio e televisão, unidades gráficas, estabelecimentos comerciais e outros”. E vai ter muito mais.

Esta entrada de grandes empresas no Estado levanta dois tipos de problemas: a gestão e o destino subsequente. Em relação à gestão, começa por se correr um risco, uma vez que nada foi auditado. Muitas das empresas podem estar em situação financeira difícil e não restar ao executivo outra alternativa senão encerrá-las e despedir o pessoal, ficando com esse ónus horrível. Em vez de um bem, o Estado recebe um mal…

Além desta primeira questão, existe outra, inversa: como assegurar que estas empresas entradas no domínio público não se tornam uma coutada de interesses individuais e familiares em que os gestores designados pelo Estado não prosseguem o interesse público, mas se limitam a colher benefícios de curto prazo?

Obviamente, a gestão destas empresas tem de ser acompanhada de perto por um organismo independente. Propomos que seja criada uma Comissão Presidencial composta por membros das auditoras reconhecidas – KPMG, Delloitte, etc. – e da sociedade civil, com o objectivo de proceder à proposta de nomeação dos gestores destas sociedades, bem como controlar a sua gestão.

Seria uma comissão transparente que prestaria contas ao público e teria poderes mistos de Assembleia-Geral e Conselho Fiscal. É fundamental a existência de um organismo independente para acompanhar e fiscalizar a gestão das empresas que estão a entrar no sector público. Basta ver os problemas que já estão a acontecer na TV Zimbo…

O segundo ponto é o do futuro dessas empresas. Parece que, atendendo à política de promoção de mercados livres seguida pelo executivo, as empresas agora obtidas pelo Estado serão privatizadas.

Se assim for, há que criar mecanismos adequados para que a privatização não culmine numa mera translação de activos, i.e., passagem das empresas de uns generais para outros generais, agora mais consentâneos com o poder. Para que isso não aconteça, a privatização deve ser feita de forma muito pública e seguindo um modelo que já temos defendido para a Sonangol.

Assim, as empresas deveriam ser privatizadas em três tranches. Uma primeira disponibilizada internacionalmente a investidores estrangeiros em bolsas mundiais com liquidez; a segunda tranche para investidores nacionais já a operarem em Angola; e, finalmente, uma terceira tranche para os trabalhadores que concorreriam com apoio creditício dos bancos nacionais, tentando-se assim criar uma pequena classe média capitalista e com interesses na gestão das empresas.

Esperamos, pois, que a equipa presidencial construa uma visão estratégica mais rica e abrangente quer para combater a corrupção, quer para estimular de modo sustentado a vida económica do País.

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