A Irresponsabilidade da PGR

Quando surgiu no espaço público uma resposta, com data de 13 de Agosto de 2020, a uma carta rogatória das autoridades judiciárias do Cantão de Genebra, na Suíça, na qual figurava o timbre da Procuradoria-Geral da República de Angola – Gabinete de Intercâmbio e Cooperação Internacional, assinada pelo subprocurador-geral da República André de Brito Domingos, e onde se podia ler, em referência a Carlos Manuel São Vicente, que “em Angola não existem indícios da prática de crimes de Corrupção, Branqueamento de Capitais, Participação Económica em Negócio ou qualquer outro crime”, pensou-se que só poderia tratar-se de mais uma brincadeira semelhante ao famoso passaporte de Bruce Lee nos processos de Isabel dos Santos. Um documento apócrifo ou mal-intencionado, portanto, e nunca um ofício verdadeiro da Procuradoria-Geral de Angola (PGR).

Na verdade, menos de um mês depois, a 8 de Setembro de 2020, a mesma PGR anunciava, através do director do seu Gabinete de Comunicação e Imprensa, Álvaro da Silva João, que tinham sido apreendidos vários imóveis e participações sociais a Carlos São Vicente no âmbito de investigações por crimes de peculato, participação económica em negócio, tráfico de influências e branqueamento de capitais.

Dificilmente se acreditaria que em Agosto a PGR afirma não haver indícios de crimes relativamente a São Vicente e que em Setembro afirma o exacto contrário.

Aliás, é também público que, a 22 de Setembro de 2020, Carlos São Vicente ficou em prisão preventiva, decretada pela PGR.

Contudo, entretanto, a PGR confirmou que o ofício ilibatório de 13 Agosto é verdadeiro e foi escrito pelos seus serviços.

Este episódio torna-se ainda mais bizarro por não estarmos a falar de um crime ocorrido entre 13 de Agosto e 8 de Setembro. Imaginemos que Carlos São Vicente disparava uma arma e matava uns cidadãos indefesos na Marginal de Luanda a 30 de Agosto. Seria verdade que, antes de 13 de Agosto, ele não tinha cometido qualquer crime de homicídio: era um pacato cidadão, e só a 30 de Agosto se tornaria um homicida. Isto justificaria o volte-face e a mudança da posição da PGR. Contudo, não foi nada disto que ocorreu.

Os crimes imputados a Carlos São Vicente datam de muitos anos antes: possivelmente, terão ocorrido entre 2000 e 2016, logo, muito antes de 13 de Agosto de 2020.

Carlos São Vicente

Deveria ser evidente que este tipo de criminalidade financeira, sofisticada e difícil de detectar, não surge repentinamente. No entanto, atendendo à cronologia dos factos, o que parece é que a PGR de Angola começa a investigar a partir do nada, conduzida por publicações nas redes sociais. Faz uma investigação com recortes de jornais. Será isto possível?

Recapitulemos os factos públicos desta história que começa a afigurar-se rocambolesca.

Em 2018, a justiça suíça desencadeou um processo de inquérito contra Carlos São Vicente por suposto branqueamento de capitais e crimes conexos. Pelo que agora se sabe, a justiça angolana não seguiu na peugada dos suíços e ficou quieta.

Algures no tempo, no âmbito do processo que abriram e de que deram conhecimento a Angola, os suíços pediram informações sobre a investigação de alegados crimes de São Vicente em curso em Angola.

A 13 de Agosto de 2020, as autoridades angolanas responderam que não havia qualquer investigação. Não existiam suspeitas sobre São Vicente nessa data.

No dia 26 de Agosto de 2020, o blogue suíço Gotham City publica a sua primeira história sobre os famosos 900 milhões de dólares de São Vicente. A notícia incendeia o mato e espalha-se por todo o lado. As redes sociais pululam de indignação. Começa o cerco mediático a Carlos São Vicente.

A 2 de Setembro de 2020, a PGR, através de uma fonte, afirma ao Jornal de Angola “que foram as autoridades angolanas que despoletaram e solicitaram o congelamento das contas”. E prosseguiu: “O processo não é novo, já se arrasta desde o ano passado, para apuramento dos factos. A PGR não está parada. Há um trabalho árduo em curso, em colaboração com as autoridades suíças. Há um bom tempo que a PGR tem estado a trabalhar sobre este caso, em colaboração com as autoridades suíças. Houve troca de cartas rogatórias e está a investigar uma série de casos que envolvem as AAA e outros parceiros e negócios que envolviam a seguradora.”

A verdade é que, até ao mês anterior, a colaboração da PGR angolana com os suíços tinha sido zero. A PGR não pedira nada, não fizera nada. Pelo contrário, inocentara Carlos São Vicente.

A fonte da PGR mentiu despudoradamente ao Jornal de Angola e à população angolana. É evidente que tal mentira descarada tem de ter consequências e tem de ser apuradas responsabilidades. Só vislumbramos uma reacção possível: a demissão do procurador-geral.

Foi o burburinho público que obrigou a PGR a sair da letargia em que deliberadamente se encontrava.

A 8 de Setembro de 2020, a PGR procede às apreensões acima referidas de forma confusa, parecendo apreender edifícios de que já dispunha, revelando grande precipitação nos seus actos.

A 12 de Setembro de 2020, a procuradora Eduarda Rodrigues, directora do Serviço Nacional de Recuperação de Activos de Angola, voa diligentemente para Berna, capital da Suíça, para se inteirar pessoalmente do caso.

Dois dias depois, a 14 de Setembro de 2020, são publicadas as exaustivas reportagens de Rafael Marques no Maka Angola sobre o tema e também surge Carlos Rosado na televisão, a explicar muito claramente a sua visão dos esquemas de enriquecimento de Carlos São Vicente. A pressão mediática e social é intensa.

Finalmente, cai o pano e, a 22 de Setembro de 2020, Carlos São Vicente é preso. Em 40 dias, passou-se de não haver indícios do cometimento de crimes à sua prisão preventiva.

Esta cronologia de factos comprova que a PGR não estava a investigar Carlos São Vicente, que mentiu descaradamente à população, e que apenas o frenesim mediático a levou a agir. Trata-se de uma situação gravíssima, porque nos revela uma instituição extremamente vulnerável, que ignora suspeitas criminosas e que anda a reboque das ondas da opinião pública.

Obviamente que o actual procurador-geral da República não tem o perfil adequado para gerir a instituição neste momento. Está sempre a ser apanhado distraído, aquilo que se descreve, em jargão militar, como estando “a dormir na forma”. Quando surgiu o caso de Isabel dos Santos, em vez de imediatamente a constituir arguida e aplicar medidas coactivas, anunciou uma viagem a Lisboa para se reunir com a sua homóloga portuguesa. Assim, o procurador deu tempo a Isabel dos Santos para organizar a sua defesa, enquanto viajava acompanhado pela comunicação social. Todo este processo contra Isabel dos Santos se prolonga de maneira inacreditável em Angola. Agora, mais uma vez, são factores externos que levam o procurador a mexer-se, depois de ter decidido ficar quieto.

Temos defendido com insistência que o combate à corrupção nunca será bem-sucedido se for protagonizado por figuras do antigamente, assente nas estruturas do passado e respeitando os modos de agir de outra época. O actual procurador é o símbolo de uma época em que a justiça não funcionava e, no fundo, mantém-na a funcionar em serviços mínimos. O combate à corrupção não pode fazer-se de forma atomista, individual, não sistemática. Tem de haver uma visão de conjunto, uma abordagem global. Sem isso, estaremos sempre, e somente, perante uma constante descredibilização dos órgãos judiciários.

Facilmente se percebe, ainda, que as divulgações iniciais em Angola da investigação suíça a São Vicente, bem como a publicação do ofício da PGR de 13 de Agosto a afirmar oficialmente que ele não era suspeito de nenhum crime, resguardam óbvias intenções políticas. No fim de contas, colocam em causa o combate à corrupção e disseminam uma mensagem de grande confusão e de falta de seriedade na condução do processo.

Não é tarde para escolher uma mudança no caminho: o primeiro passo é a demissão do procurador-geral da República angolano e, depois, a criação de um órgão próprio para combater a corrupção, imune e impermeável a influências externas.

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