Sonangol: O Epicentro da Pilhagem de São Vicente – Parte 2

O polvo no paraíso fiscal

Vamos agora desenredar os tentáculos no exterior do país do grupo AAA – um polvo comandado por Carlos Manuel de São Vicente (na foto principal, cortesia do Novo Jornal) –, socorrendo-nos das bases de dados de empresas do governo britânico e do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação.

A Sonangol criou, nas Bermudas, a primeira das empresas AAA neste paraíso fiscal. Trata-se da AAA Reinsurance Ltd., registada a 1 de Abril de 1999. A Sonangol nomeou quatro gestores seus para dirigir essa subsidiária. Rosário Jacinto assumiu as funções de PCA, enquanto Jasse David, Órfão António e Ana Celeste Webba ficaram com cargos de directores. No ano seguinte. Carlos Manuel São Vicente tornou-se PCA da AAA Reinsurance e os quadros da Sonangol desapareceram da Sonangol. Desde então, São Vicente passou a ser o único angolano na sua direcção.

A 29 de Março de 2001, Carlos Manuel de São Vicente criou a segunda empresa offshore nas Bermudas, de novo com as já conhecidas iniciais: trata-se da AAA (Angola) Investors Ltd.

Menos de um ano depois, a 1 de Julho de 2002, São Vicente criou e presidiu (até 2017) em Londres, no Reino Unido, a AAA Insurance & Reinsurance Brokers (IRB) Ltd. Segundo o relatório e contas submetido à Autoridade de Conduta Financeira, a empresa Global One Ltd., das Bermudas, detinha 70 por cento do capital desta AAA, enquanto a Sonangol se contentava com 30 por cento.

Em 2004, a AAA Serviços Financeiros Lda., ainda sob controlo da Sonangol, assumiu a totalidade das acções da AAA IRB. No ano seguinte, a totalidade das acções na sucursal de Londres passou para a AAA International Ltd., propriedade exclusiva de São Vicente. Todavia, o relatório e contas de 2006 listava novamente a Global One Ltd. como sendo a beneficiária final do total das acções da AAA IRB. Estas camadas de opacidade, esta confusão vertiginosa de trespasse de acções entre São Vicente, a Sonangol e as diferentes AAA destinavam-se, como é habitual nestes esquemas financeiros e até onde é possível, a confundir e baralhar quem se disponha a escrutinar os actos de alta delinquência financeira e lesa-pátria.

Quanto à AAA International Ltd., foi registada por Carlos Manuel de São Vicente nas Bermudas, a 19 de Julho de 2003. São Vicente era sócio único, PCA e director desta terceira offshore com as já conhecidas iniciais.

Estranhamente, Eusébio Domingos Vunge, um quadro da petrolífera nacional e cunhado do antigo director-geral da Sonangol, Joaquim David, exerceu o cargo de director desta empresa de Julho de 2003 a Março de 2005. Nessa altura, a sua esposa, Raquel da Costa David Vunge, era a chefe de Departamento de Tesouraria Central da Sonangol E.P. Actualmente, Eusébio Vunge exerce a função de vogal da Sonangol Distribuidora.

No documento de registo, da firma de advogados Appleby, está registado que a AAA International detinha um milhão de acções da AAA Insurance & Reinsurance Brokers (IRB). Ou seja, era a sócia única da AAA IRB. Entretanto, a AAA International foi desactivada a 6 de Abril de 2016.

Perante este esquema, não é difícil compreender o papel da AAA IRB como o principal veículo usado por São Vicente para as suas maracutaias financeiras. Esta empresa estava acreditada, em Londres, junto da Lloyds, uma das maiores seguradoras do mundo, que garantia credibilidade para circulação no mercado financeiro internacional.

Apenas um mês depois, a 16 de Julho de 2003, São Vicente registou a quarta empresa nas Bermudas, a AAA Risk Solutions Ltd., assumindo mais uma vez as funções de PCA e de director.

Aqui encontramos, desde logo, um primeiro problema legal: enquanto presidente do Conselho de Administração do Grupo AAA, então detido inteiramente por capitais públicos, Carlos Manuel de São Vicente fez negócio consigo mesmo ao entrar na estrutura accionista da AAA Seguros.

Edifício sede do grupo AAA, em Luanda

O esquema

Fonte da Sonangol, sob anonimato, refere que a ideia de criação das AAA em Londres e no paraíso fiscal das Bermudas, para as operações de resseguro, tinha como objectivo principal empolar os valores das apólices em Angola.

Por sua vez, as AAA no exterior solicitavam o co-seguro junto da Lloyds, de acordo com os valores do mercado internacional, e lucravam, logo à partida, com o valor inflacionado em Angola.

Através deste mecanismo, descortina-se a fuga de capitais e a blindagem de informação respeitante a operações de seguros do sector petrolífero.

A partir de 2012, a AAA Seguros, enquanto entidade residente, tinha a obrigação de receber o valor integral das apólices em Angola, como acontecia com a ENSA, a seguradora estatal.

A partir da documentação reunida pelo Maka Angola, observa-se que os termos de referência dos contratos de seguro, apólice de seguro e prémio de seguro são exactamente iguais ao prémio de resseguro. Com esta prática, os especialistas calculam que, em média, 85 por cento dos valores arrecadados pela AAA Seguros eram transferidos para as AAA em Londres e nas Bermudas, na qualidade de resseguradoras, fazendo então negociatas entre si. Deste valor, menos de 20 por cento era repassado para as co-seguradoras internacionais que cobriam os custos reais. Tudo o resto era desvio de fundos públicos, protagonizados então por um gestor público, do quadro directivo da Sonangol, São Vicente.

O esquema, conforme atrás referido, inflacionava substancialmente os prémios de seguros das petrolíferas em relação ao preço real no mercado internacional. Para as multinacionais, era indiferente, porque deduziam os valores pagos nos custos de produção. Ou seja, Angola pagava integralmente a factura. O mesmo se passava, por exemplo, com o arrendamento de casas, havendo petrolíferas que pagavam até 50 mil dólares mensais por uma residência de quatro quartos, porque incluíam esta despesa nos custos de produção e eram, portanto, reembolsados pelo Estado angolano.

Por exemplo, em 2015, pelo Bloco 15, a multinacional norte-americana Exxon pagou à AAA Seguros um total de 44 milhões de euros em seguro. Desse valor, 35,5 milhões foram transferidos directamente como prémios de resseguro para as empresas-fantasma de São Vicente, em Londres e nas Bermudas, pertencentes ao grupo AAA. Como pagamento de prémio de seguro local, a AAA Seguros encaixou apenas 19 por cento do total.

Outro exemplo: no mesmo ano, a própria Sonangol pagou 16,7 milhões de euros de seguro, pelo Bloco 3/15. Desse valor, 13,5 milhões foram parar, como resseguro, às contas das AAA fantasma nas Bermudas, tituladas por Carlos Manuel de São Vicente e família. Assim, apenas 3,2 milhões de dólares ficaram em Angola como pagamento do prémio de seguro local.

Em média, na emissão de prémios de seguro e de resseguro, 85 por cento do valor era emitido para pagamentos no exterior e apenas 15 por cento servia para pagamentos a nível local.

Do ponto de vista legal, fonte da Sonangol indica que se tratava de um esquema bem montado de evasão de divisas do país (em dólares e euros) com vista a enriquecimento ilícito. Porquê? “Obrigatoriamente, quaisquer que sejam as justificações para tais operações, os pagamentos tinham de passar primeiro pela entidade residente, a AAA Seguros, uma empresa de direito angolano”, revela esta fonte. Seria a partir da AAA Seguros que o resseguro deveria ser directamente contratado com as grandes resseguradoras internacionais que asseguram os grandes riscos mundiais.

“Até por uma questão de impostos, esses fundos tinham de passar por Angola”, afirma, no mesmo sentido, um ex-executivo dos petróleos.

“Todo este esquema factual de criação de custos inexistentes e retirada de dinheiro de Angola para a esfera privada de Carlos São Vicente em contas bancárias estrangeiras indicia a prática de vários crimes”, explica Rui Verde, analista jurídico do Maka Angola. Desde logo, de acordo com o jurista, o crime de tráfico de influências (artigo 41.º da Lei 3/14, de 10 de Fevereiro), “pois terá começado pelo abuso de posições de importância”.

Depois acrescem os típicos crimes de abuso de confiança e burla por defraudação (respectivamente, artigos 453.º e 451.º do Código Penal).

Para Rui Verde, “a reentrada dos montantes ilegalmente obtidos no sistema bancário configurará o crime de branqueamento de capitais” (artigo 60.º da Lei 34/11, de 12 de Dezembro).

“Finalmente, teremos ainda a considerar a fuga aos impostos, que poderá consubstanciar um crime de fraude fiscal qualificada (artigo 13.º da Lei 3/14, de 10 de Fevereiro)”, conclui.

A conivência da banca

Globalmente, no período louco das divisas (2010-2015), saíram das reservas internacionais um total de 101 mil milhões de dólares, ou seja, 20,2 mil milhões de dólares anuais. Esse valor representava o dobro de saídas combinadas nos nove anos anteriores (2000-2009) e igualmente o dobro dos últimos quatro anos (2016-2020 – até à data).

Assim, entre 2010 e 2015, foram realizadas as maiores transferências na história do país, representando a maior fuga de capitais e evasão de divisas, conforme registos em posse do Maka Angola. Grande parte destas transferências ocorreram sem o cumprimento dos requisitos legais do Banco Nacional de Angola (BNA).

É neste contexto que se percebe como Carlos Manuel de São Vicente conseguiu amealhar de forma tão fácil e desabrida uma imensa fortuna pessoal: com o apoio político-institucional da Sonangol, da Presidência e do BNA.

As operações da AAA Seguros até 2010 são difíceis de rastrear, tendo em conta as fragilidades operacionais e as limitações políticas do BNA. A partir de 2012, o BNA introduziu novos mecanismos de controlo nas operações cambiais, tornando tudo mais transparente.

Com efeito, nesse mesmo ano, entrou em vigor a Lei n.º 2/12 (Lei sobre o Regime Cambial para o Sector Petrolífero), que obriga a que os residentes cambiais (empresas de direito angolano e cidadãos nacionais residentes) recebam pagamentos em moeda nacional. Todavia, abriu-se uma excepção à AAA Seguros, que beneficiou de tratamento especial, tendo continuado a receber pagamentos em divisas.

Fonte do BNA argumenta que “as companhias petrolíferas pagavam directamente lá fora. Tentou-se terminar com essa prática quando foi do processo de desdolarização, mas provou-se muito difícil por alegadamente colocar em causa a segurança do sector de petróleo e gás”.

Para se ficar com uma ideia do volume de negócios, entre 2013 e 2014, só a multinacional Cobalt International Energy pagou mais de 80 milhões de dólares em prémios de seguros à AAA Seguros, para a perfuração de 14 poços de petróleo nos Blocos 9, 20 e 21. Esse valor equivalia à média de 5,7 milhões de dólares de seguro por poço. “A maioria desse dinheiro foi paga fora”, relata um responsável do sector. Para o mesmo tipo de operações noutros países africanos, a Guiné Equatorial e o Senegal, as multinacionais pagavam em média um milhão de dólares de seguro por poço, directamente à Lloyds, a principal seguradora internacional da indústria de petróleos.

No cumprimento da legislação em vigor, as empresas petrolíferas realizaram vendas de divisas ao BNA, no valor de 1,16 mil milhões de dólares, para efeitos de cobertura das apólices de seguro da AAA Seguros. Desse valor global de 1,16 mil milhões, só em 2015, a AAA Seguros abocanhou cerca de 800 milhões de dólares, que São Vicente transferiu para o seu paraíso fiscal.

Em 2015, Angola já registava uma quebra das receitas petrolíferas e uma crise cambial. A afectação de divisas passou a ser racionada, tendo como prioridade os alimentos e os medicamentos. O governo do BNA submetia ao presidente da República a lista de necessidades cambiais a que deveria fazer face.

Dados consultados pelo Maka Angola revelam que o BIC transferiu mais de 500 milhões de dólares para as offshores de Carlos Manuel de São Vicente e família. Segue-se o BAI, no mesmo período, com um total de 230 milhões de dólares, e o BFA, com mais de 40 milhões de dólares.

Do referido montante global, 460 milhões de dólares foram transferidos por débito das contas da AAA Seguros junto dos bancos comerciais. Este valor, incrivelmente e de forma incompreensível, correspondia aos fundos próprios da AAA Seguros. Imaginem que todas as empresas nacionais com contas em dólares nos bancos comerciais pudessem fazer o mesmo que São Vicente fez. Não haveria um mísero dólar no sistema bancário.

Apesar disso, conforme o acima referido, a AAA Seguros S.A. tinha, então, um elevado volume de fundos próprios em moeda estrangeira, para dar cobertura às apólices das operações petrolíferas.

Todavia, a 14 de Dezembro de 2015, Carlos São Vicente escreveu ao então presidente José Eduardo dos Santos, com a referência 14200-CA-S-2015, a anunciar o cancelamento das apólices de seguro não pagas e dos pagamentos dos prémios de resseguro das operações petrolíferas por falta de divisas. São Vicente argumentava que os resseguros eram feitos em dólares, assim como os sinistros pagos pelos resseguradores (as suas empresas offshore). O valor global das apólices não pagas, de acordo com os documentos que o Maka Angola tem em sua posse, ascendia a 122 milhões de dólares e compreendia o período entre 2008 e 2015. Vale repetir o que já mencionámos: A AAA Seguros tinha mais de 460 milhões de dólares em fundos próprios, nas contas em Angola, resultantes das apólices pagas pelo sector petrolífero.

Ora, torna-se cada vez mais difícil compreender como é que a Sonangol passa as suas acções numa empresa que acumulou meio bilião de dólares, só em Angola, para os bolsos de Carlos Manuel de São Vicente sem que este tenha pagado um tostão.

Por sua vez, a 17 de Dezembro de 2015, a Casa Civil do presidente da República, por ofício 500/SAEP/C.CIV.PR/2015, despachou o caso para o BNA satisfazer a demanda de São Vicente.

“O problema era a condição emocional e de chantagem a que tínhamos chegado. O presidente foi confrontado com a informação segundo a qual a indústria petrolífera suspenderia as suas operações sem seguro”, revela um antigo alto funcionário da presidência, familiarizado com o dossiê.

Pelo meio, o então PCA da Sonangol, Francisco de Lemos José Maria, pressionou directamente o BNA, na altura liderado por José Pedro de Morais, a disponibilizar mais 300 milhões de dólares à AAA para efeitos de prémios de resseguro. Esse valor foi transferido para as offshores do grupo AAA, já detidas na totalidade por Carlos Manuel de São Vicente.

Tendo em conta as muitas centenas de milhões de dólares de que temos vindo a falar, compreende-se que São Vicente, só numa conta na Suíça, tenha quase mil milhões de dólares. Quanto não terá em paragens como as Bermudas?

Pela boca do próprio São Vicente temos esta auto-denúncia lapidar, publicada a 15 de Dezembro de 2017: “Angola não tem dólares dos EUA porque é um país com corruptos que roubam com total impunidade o dinheiro do Estado, não tem um verdadeiro banco central [BNA].”  Brincou com o BNA como quis e bem entendeu e ainda o reduziu à insignificância.

Estranhamente, há muito que Angola tem uma Unidade de Informação Financeira (UIF), com a missão de “recolher, centralizar, tratar e difundir, a nível nacional, a informação respeitante à prevenção e repressão dos crimes de branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e do financiamento do terrorismo.” Contudo, este órgão, dirigido por Francisca de Brito, quadro da Sonangol, tem-se manifestado totalmente ausente e omisso nos escândalos monumentais de evasão de divisas e fuga de capitais. A investigação do Maka Angola ao grupo AAA e a Carlos Manuel de São Vicente terá ainda uma terceira e última parte.

Comentários