O Perigo das Políticas Económicas Recessivas em Angola

Preocupa muito a excessiva atenção que se dá à dívida pública e ao défice orçamental no discurso e na política económica em Angola. Temos alguns economistas famosos, quase todos os dias, a fazerem previsões catastróficas sobre a evolução da dívida e do défice, a que acresce o governo a abraçar as políticas recessivas de contenção (cortes na despesa e aumentos de impostos), seguindo os modelos económicos propostos pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O discurso económico angolano começa a parecer-se com o português, o qual levou sucessivos governos de Lisboa a enredarem-se num labirinto de fragilidades financeiras de onde não conseguem sair. Há que evitar essa “moda” funesta.

Sejamos totalmente claros: a dívida e o défice não são o principal problema da economia angolana e não justificam que a política económica se torne recessiva.

No meio de uma recessão, que no fundo já dura desde 2015, não tem qualquer sentido aumentar impostos e cortar a despesa pública para supostamente equilibrar as contas. Isso só aprofunda a recessão. O principal objectivo da política do governo deve ser modificar a estrutura da economia, relançar o crescimento e promover a produtividade da economia.

O Não Problema da Dívida Pública

Quanto à dívida pública, neste momento, o seu total (dívida pública interna e externa) está estimado na ordem dos 111% do PIB. Este valor por si mesmo não indica nada. O que importa é a capacidade do país para pagar a dívida, e se o seu incremento faz aumentar as taxas de juro. Portanto, quando se olha para a dívida pública de um país, temos de ver se, em concreto, esse país tem capacidade de pagamento e se essa dívida provoca um aumento assinalável das taxas de juro.

Mais do que isso, para se avaliar a realidade de uma dívida, interessa perceber a sua qualidade, e não a sua quantidade, como bem refere Mariana Mazzucato, do University College de Londres. É evidente que é necessária dívida para estimular a economia quando esta está estagnada, e para fomentar infra-estruturas básicas como vias de comunicação, escolas, hospitais e qualificação de recursos humanos.

Aliás, alguma das mais actuais doutrinas económicas, como a teoria monetária moderna, defendem que os governos devem contrair o máximo de dívida que puderem, para garantir o pleno emprego, sendo função do banco central manter as taxas de juro baixas. Embora esta teoria não seja consensual, a verdade é que nos Estados Unidos e em boa parte da Europa, para amortecer os choques económicos da pandemia Covid-19, foi isso que os governos fizeram: aumentar rapidamente a dívida para garantir o emprego e não deixar afundar a economia. Até ao momento, o acréscimo de dívida não levou a qualquer elevação das taxas de juro.

Voltando a Angola, sublinhe-se que o percentual da dívida e o aumento que esta tem sofrido reflectem sobretudo a desvalorização do kwanza. Segundo o FMI calculava em Dezembro passado, cerca de quatro quintos do aumento da dívida pública angolana resultaram de movimentos nominais, fruto da liberalização do câmbio do kwanza no quarto trimestre de 2019. Se repararmos, quando medida em dólares, a evolução da dívida não é tão intensa como aparenta. Se nos reportarmos apenas à dívida pública externa, que é a mais importante, verificaremos, atendendo aos números do Banco Nacional de Angola (BNA), que os grandes saltos no valor da dívida se dão entre 2013 a 2015, de 13 mil milhões de dólares para 23 mil milhões de dólares, e depois de 2015 para 2016, de 23 mil milhões de dólares para 34 mil milhões de dólares. A partir daí, a dívida tem continuado a subir, mas a um ritmo menos intenso. Por exemplo, de 2017 para 2018 aumentou apenas de 38 mil milhões de dólares para 41 mil milhões de dólares.

A China como Chave da Dívida Pública Angolana e as “Dívidas Odiosas”

Contudo, o mais importante em relação à dívida pública externa é que cerca de metade desta se refere à China. A dívida à China tem, primeiramente, um carácter político e só depois financeiro. É uma questão que o governo tem de resolver politicamente com as autoridades chinesas. Angola foi o modelo para o investimento chinês em África, pelo que qualquer questão de dívida tem de ser enquadrada nesta premissa. Se a dívida chinesa porventura estrangular o povo angolano, então os críticos ocidentais da China e do seu envolvimento em África, a começar por Donald Trump e Mike Pompeo, terão razão… Certamente, a China não quererá fornecer munições aos seus detractores. A China tem uma responsabilidade política face a Angola.

Além do mais, uma parte da dívida chinesa será “dívida odiosa”, tendo servido para actividades corruptas de Sam Pa e seus parceiros angolanos. Essa parte deverá ser investigada e anulada, sendo imputada aos beneficiários privados efectivos. Isto é, quem se apropriou dos empréstimos chineses é que os deve pagar.

Na verdade, Angola necessita de fortes investimentos para crescer. Investimentos em infra-estruturas como estradas, portos, caminhos-de-ferro, na produção e distribuição de água e de energia eléctrica, assim como nas telecomunicações e tecnologias de informação. Obviamente, o sector privado não tem meios para empreendimentos deste porte. Só o Estado o pode fazer, e para isso necessitará de mais dívida.

A questão essencial é que o dinheiro da dívida tem de ser aplicado eficientemente e com rigor em projectos que desenvolvam o país. Não pode ser desviado para fins privados corruptos. Daí o que sempre temos realçado: o combate à corrupção anda de mãos dadas com o relançamento económico.

Quanto ao défice orçamental, o quadro até à Covid-19 até era mais risonho em termos de números. O governo tinha alcançado um excedente de 2,1% do PIB em 2018, em 2019 ainda mantinha um pequeno superavit de 0,8%. Apenas em 2020 se prevê um défice superior a 4% do PIB. Também aqui não vale a pena dramatizar. As medidas respeitantes ao orçamento não devem assentar em cortes, mas em racionalização e eficiência.

O Que Fazer à Dívida e ao Défice

Assim, é fácil enunciar o que deve ser feito em Angola, embora a prática se revele sempre mais difícil. Em relação à dívida, há que negociar com a China o seu reescalonamento racional, prestando especial atenção aos termos da dívida contraída com esse país em 2016. Além disso, em geral, deverá tentar-se prolongar os prazos de pagamento da dívida existente e, quando possível, trocar dívida com taxas de juro mais baixas e aderir aos programas internacionais de redução ou flexibilização de dívida.

Ao mesmo tempo, a dívida pública deve ser auditada, procurando-se a chamada “dívida odiosa”, aquela que foi feita para fins privados. Esta deve ser anulada e ser paga pelos privados que dela beneficiaram.

Por outro lado, nada impede que seja contraída nova dívida para estimular a economia e fomentar os aspectos básicos infra-estruturais acima mencionados.

Em relação ao Orçamento Geral do Estado, não existe necessidade de cortes, mas de racionalização. Deve-se acabar com os funcionários-fantasma, com as obras sobrefacturadas e com todas as invenções financeiras do passado. O Orçamento deve corresponder a gastos reais com pessoas e obras, e não a essas invenções. Mais uma vez se vê a ligação indelével entre o combate à corrupção e a recuperação económica. Em vez de contemplar medidas recessivas, a política financeira deve portanto racionalizar a despesa e torná-la eficaz.

Sem dúvida, para relançar a economia será necessário um esforço adicional do Estado, quer ao nível de mais investimento, quer ao nível da criação de emprego. Possivelmente, será até preciso contrair mais dívida e aumentar o défice, n sentido de permitir que Angola retome o crescimento e volte a ter emprego, e não o contrário. O importante é que o dinheiro seja bem gasto e sem as actividades corruptas tradicionais…

João Lourenço, Deng Xiao Ping e a Mudança da Equipa Económica

O grande obstáculo à implementação de um programa coerente de recuperação económica assente nas premissas que acabámos de descrever é político. Três anos após a sua tomada de posse, e após ter anunciado a dupla flecha orientadora da sua governação – anticorrupção e recuperação económica –, João Lourenço não tem uma equipa económica capaz de tirar a economia do lodo.

De uma parte assistimos à repetição da cartilha recessiva do combate ao défice e à dívida, e do outro temos essencialmente um deserto de ideias. Algumas medidas são tomadas, os discursos do presidente são estimulantes, mas a prática da governação económica é escandalosamente inerte ou contraproducente.

Em 12 de Julho passado, a propósito da revisão do Orçamento Geral do Estado de 2020, em entrevista ao Jornal de Angola, a ministra das Finanças fez eco da política recessiva que pretende para Angola. Nesse diálogo com o jornalista Eugénio Guerreiro, Vera Daves afirmou, utilizando linguagem técnica, que “precisamos de superavits consecutivos para podermos reduzir o stock da dívida” e “compete também [ao Ministério das Finanças] equilibrar as contas públicas e temo-lo feito com medidas de fomento da receita e redução da despesa”.

Vera Daves, ministra das Finanças

Em linguagem simples, o que a ministra quer dizer é que quer reduzir a dívida pública através do aumento de impostos e redução das despesas do Estado. Isto não faz sentido numa economia cujo PIB não cresce desde 2016 (em 2015 já só cresceu 0,9%…). Obviamente, o caminho apontado pela ministra é o de mais recessão, mais desemprego.

A redução da dívida faz-se através da negociação, da utilização dos mecanismos de mercado para baixar taxas de juro, da adesão aos mecanismos internacionais para flexibilização, mas não deve sequer ser um objectivo primordial da política angolana.

A este foco errado do Ministério das Finanças acresce que a restante equipa económica é timorata e presa ao passado. Não tem imaginação. Vejamos um exemplo: a equipa económica anunciou como benchmarking da sua actuação para o estabelecimento de um clima favorável aos negócios, os conceitos e métodos utilizados pelo relatório do Banco Mundial Doing Business (isto em si mesmo é discutível, mas vamos aceitar por agora). Ora, acontece que em 2018 Angola se encontrava na 175.ª posição em 190 países. Infelizmente, em 2019, em vez de melhorar… piorou. Passou para o 177.º lugar.

Não se duvida de que na área económica exista uma vontade de mudança, mas não está disponível a coordenação e o estabelecimento dinâmico dessa mudança, nem mesmo com a criação de cargos como o do ministro da Coordenação Económica, Manuel Nunes Júnior (na foto principal). Os erros repetem-se, os métodos replicam-se. Os programas começados pela letra P são inúmeros: PRODESI, PIIM, etc. Mas ninguém sabe avaliar a sua eficácia, se o dinheiro é bem gasto.

Na verdade, a dois anos das eleições, o que se vê é que apesar da intensa retórica presidencial, a reforma económica avançou pouco. O país está em recessão há quatro anos, o desemprego é brutal, e as mudanças estruturais na economia são poucas e lentas.

Quando Deng Xiao Ping, na China, começou a ver as suas reformas postas em causa e a não acelerar, resolveu pessoalmente realizar aquilo que historicamente ficou conhecido como “A Grande Viagem ao Sul”. Nessa viagem, Deng Xiao Ping percorreu o Sul do país, enfatizando a necessidade premente de reforma económica, e exortando os vários líderes do partido a entender que “aqueles que não promovem reformas devem ser retirados de suas posições de liderança”, bem como a “serem mais ousados na realização das Reformas e Aberturas, ousar fazer experiências”.

João Lourenço, se quer cumprir o seu programa, tem de ter a mesma ousadia, ir directo aos vários decisores do governo, exortá-los a reformarem a economia ou a demitirem-se, a terem imaginação. Está nas mãos do presidente da República mudar este estado de coisas, mas tem de agir em breve.

Se João Lourenço quer ser Deng Xiao Ping, está na altura de fazer a sua “Grande Viagem ao Sul”, afastar os opositores das reformas, os arrasta-pés e os timoratos que impedem o desenvolvimento económico de Angola.

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