Contratação de Advogados em Angola

No âmbito do processo de privatização do Banco do Comércio e Indústria (BCI), o Instituto de Gestão de Activos e Participações do Estado (IGAPE) anunciou a contratação para a prestação de serviços de intermediação financeira da sociedade de advogados portuguesa Vieira de Almeida & Associados – Sociedade de Advogados, S.P., R.L. (“VdA”).

O IGAPE justificou esta contratação, resultante de um concurso limitado por convite, do seguinte modo: “A VdA é uma sociedade de advogados líder nas áreas de M&A e de mercado de capitais em Portugal, com vasta experiência em diversos processos de privatização, em Portugal e nas jurisdições africanas onde actua através da rede VdA Legal Partners.”

Não especificou o IGAPE que a VdA era uma das sociedades de advogados de eleição de Isabel dos Santos. Por exemplo, em Fevereiro de 2020 foi noticiado que estes advogados tinham ajudado “a fazer o esboço de um decreto presidencial assinado por José Eduardo dos Santos para estudar a reestruturação da Sonangol. Quem pagou foi uma offshore da filha sediada em Malta, a quem a factura foi enviada meses antes de Isabel dos Santos assumir a liderança da petrolífera”.

Vamos acreditar que a VdA tem uma excelente separação interna de assuntos, as chamadas chinese walls, e que, apesar de ter tratado dos interesses de Isabel dos Santos – eventualmente acabando algum dos seus advogados por ser acusado de cumplicidade em possíveis processos criminais referentes à actuação de Isabel na Sonangol –, não vai misturar os temas, e manifestamente defenderá os objectivos do Estado angolano. Vamos, também, acreditar que a VdA possui uma competência especial para lidar com privatizações em Angola, por conhecer bem o mercado e nele actuar há muitos anos. Vamos ainda acreditar que os advogados da VdA agem sempre diligentemente, utilizando os mais avançados conhecimentos jurídicos ao dispor. Cada um é livre de acreditar no que quiser.

O que não se compreende é por que razão não entra nesta assessoria nenhuma firma de advogados angolana. Estamos perante um acto de soberania nacional: a alienação de activos importantes do Estado. Do ponto de vista simbólico, deveria haver uma afirmação dessa soberania na execução técnica da decisão. A soberania tem de ser exercida, caso contrário deixa de existir. Apartar advogados angolanos deste processo é desleixar a defesa da soberania e dos interesses do Estado.

Muitos argumentarão que não se trata de uma questão de soberania, mas de proficiência técnica. Não existirão em Angola advogados com as capacidades técnicas para desenvolver e acompanhar estes complexos processos de privatização. Na verdade, temos contactado, por variadas razões, com vários advogados angolanos que demonstram um conhecimento e uma capacidade técnica igual a qualquer outro advogado de qualquer parte do mundo. Podem ser menos, mas existem. Não se deve menorizar a capacidade da advocacia angolana. Mas o problema maior nem se coloca a esse nível.

Mesmo se, por absurdo, considerássemos não existirem advogados em Angola aptos a acompanhar os processos de privatização ou outros procedimentos intrincados, isso não se resolveria com a contratação sistemática de estrangeiros, deixando os angolanos permanecerem na ignorância. Se não sabem, aprendem, e nessa medida deve ser-lhes dada oportunidade para aprender. Assim, a sua inserção nestes processos de elevada exigência técnica devia ser obrigatória, pois gera um processo de aprendizagem e permite transferir know-how.

Uma das mais indigentes permanências do colonialismo em Angola é na área do direito. Cópias e cópias de legislação portuguesa abundam. Transformou-se a excelência do direito angolano na excelência da cópia portuguesa. Ora, o direito em Portugal há muito que deixou de ser um exemplo: o seu sistema criminal é lento e não funciona para casos complexos, o direito do trabalho é sempre apontado por observadores internacionais como promotor do desemprego, o direito fiscal é opressivo – a litania das deficiências do direito português poderia continuar interminavelmente.

O ponto é o da necessária independência e afirmação do direito angolano, e esses só se alcançam se for dada oportunidade aos juristas angolanos para aprender, para errar, para corrigir o erro e para desenvolverem o seu trabalho. Estar sempre a ir buscar, como elemento principal, sociedades de advogados portuguesas é uma forma de manter o permanente atraso angolano, de manter as trevas da ignorância. Por esta razão de fundo, mesmo que a VdA – a qual tão bem serviu Isabel dos Santos – possa servir igualmente bem o Estado angolano, consideramos que deve ser liminarmente repudiada a sua contratação como principal intermediário jurídico da privatização do BCI. Em vez dela, defendemos que se contrate uma sociedade angolana para desempenhar essas funções, eventualmente assessorada por alguma outra sociedade estrangeira.

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