Justiça Capturada: O Caso Abdul Nassour

As detenções efectuadas pelo Serviço de Investigação Criminal (SIC), na passada sexta-feira, do cidadão britânico Abdul Majid Nassour e, ontem, do advogado César Augusto, por um suposto crime de abuso de confiança revelam os contornos da podridão no sistema judicial.

Ontem, César Augusto dirigiu-se ao SIC Geral para ser ouvido em acareação, conforme instruções telefónicas que lhe foram transmitidas pelo queixoso Mário Fernandes. No local, o instrutor do processo, Neto Caetano, exibiu-lhe um mandado de captura datado de 30 de Junho, e conduziu-o imediatamente aos calabouços.

Esse mesmo Mário Fernandes, um comerciante, foi quem transportou os agentes do SIC na sua viatura, em Abril passado, na primeira interpelação que estes fizeram a Abdul Nassour, na sua residência.

“O Mário Fernandes disse-me ter falado directamente com o director-geral do SIC, para a nossa detenção, e gabou-se de a sua mulher Paula ter falado também com o procurador-geral da República para garantir que haveria consequências graves contra nós”, revela o advogado.

Já o cidadão britânico confirma ter recebido várias ameaças telefónicas de Mário Fernandes, incluindo mensagens via WhatsApp e por SMS para o pagamento de uma dívida que nunca cobrou formalmente, como adiante se explica. Como parte das ameaças, Mário Fernandes recorreu inclusive ao embaixador do Líbano em Angola, telefonou à família de Abdul Nassour no Líbano, entre outras diligências no sentido de obrigar o britânico a pagar uma dívida que desconhecia.

César Augusto explica melhor o caso. Em 2012, a sua empresa Cetofil ganhou um concurso de fornecimento de víveres para as Forças Armadas Angolanas (FAA), de 635 milhões de kwanzas (então equivalentes a mais de 6 milhões de dólares).

Refere que houve demora na execução do contrato e que, quando o mesmo se efectivou, a Cetofil apresentava insuficiências de estoque. O irmão de Abdul Nassour, Mustafá, que na altura detinha plenos poderes de gestão da empresa, negociou com a empresa Organizações HRS o fornecimento da mercadoria em falta a troco de uma comissão.

Segundo César Augusto, “os fornecimentos da HRS às FAA nunca passaram pelos armazéns da Cetofil, passou a ser um processo directo”.

“O Ministério das Finanças realizou pagamentos parcelares e os montantes foram regular e integralmente transferidos para a HRS. Depois houve problemas de liquidez e o Estado passou a dever 128 milhões de kwanzas durante muitos anos”, conta.

César Augusto refere que esse processo foi sendo feito como acto de boa-fé, “porque a HRS nunca apresentou uma nota de cobrança à Cetofil ou alguma reclamação de pagamento de dívida”.

“Depois houve o processo de regularização da dívida pública junto do Ministério das Finanças. Tratei da certificação da dívida. O ministério fez o pagamento em Fevereiro passado dos 128 milhões de kwanzas”, explica. Para o efeito, Mário Fernandes havia-lhe prometido um pagamento de 25 mil dólares para tratar do expediente, uma vez que César Augusto já se tinha afastado da Cetofil.

Segundo o interlocutor, quem o avisou de que os fundos já haviam sido depositados na conta da Cetofil foi o próprio Mário Fernandes, que tinha acesso aos extractos bancários da empresa alheia através dos seus contactos no Banco de Poupança e Crédito (BPC).

César Augusto explica que Abdul Nassour movimentou os fundos na qualidade de director financeiro, com plenos poderes, por uma razão fundamental: desconhecia os termos do acordo com a HRS, tratado pelo seu irmão Mustafá, que saiu de Angola há anos e vive actualmente no Líbano.

Estranhamente, Mário Fernandes apresentou queixa ao SIC sem nunca ter formalizado qualquer cobrança junto da Cetofil. Em Abril passado, Abdul Nassour, por pressão de elementos do SIC e ameaças constantes de Mário Fernandes, entregou o remanescente de 35 milhões de kwanzas.

“Eu não conheço esse senhor Mário Fernandes. Nunca estivemos juntos. Ele só me ligou para me ameaçar. Entreguei o dinheiro ao César para acertar contas com ele”, diz Nassour.

Por sua vez, César Augusto confirma ter recebido os 35 milhões de kwanzas para transferir para a conta da HRS, a entidade credora. “O Mário Fernandes recusou o depósito na conta da HRS junto do BPC, porque afirmou que a empresa tinha dívidas com o referido banco e este cativaria os valores. Insistiu que eu transferisse o montante total para a sua conta pessoal, também domiciliada no BPC, e eu assim o fiz”, denuncia César Augusto. Ao receber essa transacção, Mário Fernandes não emitiu qualquer nota de recebimento de parte da suposta dívida.

Ao fim do dia de hoje, o procurador José Domingos Lino ordenou, sem proferir qualquer despacho, a libertação do advogado César Augusto, depois de o ter ouvido em interrogatório e constituído como arguido preso no âmbito da participação criminal n.º 1091/020-05, em mais uma anomalia neste processo. Abdul Majid Nassour, constituído arguido preso ontem no mesmo processo, continua detido sem justificação.

O que é mais extraordinário em toda esta história é a forma como o sistema judicial pode ser usado abusivamente por qualquer aventureiro: desde que tenha as ligações certas, consegue usar a justiça como um meio privado para resolver os seus problemas pessoais.

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