Bruce Lee Já Era

Tudo começou com um grande fogo-de-artifício, quando os novos responsáveis pela comunicação de Isabel dos Santos vieram anunciar ao mundo que, no processo judicial que determinou o arresto de vários bens, empresas e contas bancárias que esta detinha em Angola, existia um passaporte falso com a assinatura de Bruce Lee.

A chalaça foi grande, mas, lendo-se o despacho de 23 de Dezembro de 2019 da juíza Henrizilda do Nascimento, que ordenou o arresto, facilmente se percebia que não havia, na fundamentação do mesmo, qualquer referência ao passaporte. Portanto, como escreveu Shakespeare, “much ado about nothing” (muito barulho por nada). Isto mesmo defendemos na altura.

Entretanto, a 23 de Abril de 2020, Isabel dos Santos veio deduzir, junto do Tribunal Provincial de Luanda, no âmbito do processo de arresto mencionado, um incidente de falsidade, alegando que a referida providência, com o n.º 3301/2019-C, “fez uso de documentos falsos” fabricados por funcionários do Estado. Além do passaporte, Isabel dos Santos referia-se ainda a um documento elaborado pelo Serviço de Informação e Segurança do Estado (SINSE) e a um contrato celebrado entre a empresa Exem e a Sonangol.

Em vez de meramente veicular as suas queixas através das agências de comunicação, Isabel dos Santos fez bem em vir a tribunal defender o seu ponto de vista. Os tribunais podem ter muitos defeitos, e têm, mas no fim de contas obrigam ao confronto de duas posições submetidas a publicidade crítica, registando cabalmente as razões de cada uma, e permitem, geralmente, a apresentação de um raciocínio baseado na lei e na lógica.

Não se afigura que, neste caso, tenha havido erro na decisão. Pelo contrário, ela é clara e esperada, pois coaduna-se com o que constava da decisão de Dezembro sobre o arresto. E nessa decisão não se encontrava qualquer referência ao passaporte.

Tramitada como incidente, a alegação de falsidade foi decidida, a 19 de Maio de 2020, pela juíza Henrizilda do Nascimento, que indeferiu o requerimento de Isabel dos Santos.

A decisão da juíza começa por fazer alguma pedagogia, certamente tendo em conta as variadas notícias veiculadas na comunicação social, explicando o que é um arresto e que este pode ser decretado sem audiência da parte contrária, nos termos do artigo 405.º do Código do Processo Civil.

Depois, a juíza explicita exaustivamente as dificuldades em notificar Isabel dos Santos, por ela já não se encontrar em Luanda, mas a viver entre Lisboa e o Reino Unido, sem morada conhecida. Nesse sentido, embora sem o referir expressamente, a juíza recorre à doutrina do facto público e notório, que se encontra, por exemplo, reflectida no artigo 514.º do Código do Processo Civil. Estes factos são os de conhecimento geral no país, absorvidos pelo cidadão comum, pelas pessoas regularmente informadas, com acesso aos meios de informação habituais.

Percebe-se melhor, com esta explicação, um outro dos fogos-de-artifício que as agências de comunicação de Isabel dos Santos têm replicado acerca do não recebimento dos seus embargos (oposição) ao arresto de Dezembro de 2019. Mas, uma vez que não conhecemos directamente o despacho que não aceitou os embargos, não nos debruçamos agora sobre o assunto.

Ainda no âmbito da fundamentação da decisão da juíza, esta passa a expor a jurisprudência sobre os incidentes da instância. Trata-se de situações secundárias, mas que podem modificar determinados elementos do processo. Depois, a juíza explica como funciona este processo dentro do processo.

Claramente, e isso é de aplaudir, Henrizilda do Nascimento tem a preocupação, ao longo da sua exposição, de ser pedagógica e explicar com cuidado o seu raciocínio. Vê-se que tem a preocupação de se dirigir à comunidade.

Finalmente, entra na questão concreta do passaporte. É cristalina quando afirma: “[o passaporte] não teve relevância na decisão da causa, pois que para a decisão proferida o tribunal tomou em consideração a existência ou possível existência do crédito sobre os arrestados [Isabel e associados] e o receio de perda da garantia patrimonial” (p. 9 do Despacho). De seguida, e de forma plena, a juíza afirma: “O tribunal não alicerçou a sua decisão na cópia do passaporte.” (p. 10) Bastava ter lido a decisão de arresto para se perceber isto, mas assim fica manifestamente estabelecida a irrelevância do passaporte.

Em relação aos outros dois documentos, a juíza também considera não haver falsidades efectivas, mas interpretações díspares do seu conteúdo ou da forma como foram obtidos. E conclui não ser função de um tribunal cível inquirir esses aspectos.

No final, decide pelo indeferimento dos pedidos de Isabel dos Santos. Como referimos, há dois aspectos interessantes nesta decisão. O primeiro é a preocupação pedagógica da juíza Henrizilda do Nascimento, que explica os vários passos do raciocínio até chegar às conclusões, dando lugar a um exercício de comunicação pública muito interessante. É proveitoso haver despachos judiciais curtos e explicativos, e não intermináveis “lençóis” plenos de citações que não se percebem. O segundo aspecto é o óbvio: o passaporte de Bruce Lee nunca teve relevância no caso judicial. Acabou assim por ser contraproducente tanto barulho à volta dele.

Comentários