Abuso do Abuso de Confiança

Temos acompanhado o caso Abdul Majid Nassour, uma vez que está a revelar-se um exemplo típico da privatização da justiça por parte de interesses particulares (ver aqui e aqui).

E, mais do que a captura da justiça por interesses privados, trata-se de uma ilustração preocupante  do renascimento de modos pré-civilizacionais, que se julgavam há muito abolidos, de prisão por dívidas.

A evolução do caso é desanimadora para os que defendem uma justiça transparente. O procurador da República junto do Serviço de Investigação Criminal (SIC), José Hendengwa Tcyiombe, insiste em considerar que se está perante uma situação de abuso de confiança, embora agora já enuncie os artigos correctos do Código Penal (453.º e 421.º n.º 5), ao contrário do que fez aquando do mandado de detenção, e, nessa medida, decretou a prisão preventiva de Abdul Nassour após interrogatório.

O estranho é que os factos enumerados no despacho do procurador que decreta essa prisão preventiva não são muito diferentes daqueles que temos revelado nas nossas peças sobre o tema.

É reconhecido que a empresa Cetofil, onde Abdul Nassour trabalhava, ganhou um concurso para fornecer as Forças Armadas Angolanas (FAA) no valor de 635 699 774,84 kwanzas (seiscentos e trinta e cinco milhões  e seiscentos e noventa e nove mil e setecentos e setenta e quatro kwanzas e oitenta e quatro cêntimos). A Cetofil começou por obter directamente e fornecer as FAA com as mercadorias necessárias. A dado passo, a empresa necessitou de recorrer à empresa Organizações HRS (queixosa neste caso) para fornecimento de alguns dos produtos. Nesse contexto, as duas empresas assinaram um compromisso segundo o qual a HRS entregaria as mercadorias à Cetofil para que esta cumprisse o contrato com as FAA e, em contrapartida, a Cetofil remeteria à HRS os pagamentos recebidos por parte das FAA. Esses pagamentos eram feitos em nome da Cetofil e para a sua conta bancária, e só depois seriam transferidos para a HRS.

Em certo momento, as FAA atrasaram um pagamento de cerca de 128 milhões de kwanzas, apenas recentemente regularizado. Entretanto, afirma o despacho do procurador, Abdul Nassour terá ficado responsável pela empresa. Este facto é declarado pelo procurador, mas carece de mais prova. Que tipo de responsabilidade assumiu ele? Ficou com o controlo total da empresa? Isto não é de todo evidente.

O que é evidente, até ao momento, é que Abdul Nassour não assinou o compromisso com a HRS, e que o dinheiro a pagar pelas FAA sê-lo-ia para a Cetofil, que depois teria a obrigação de o reenviar, pelo menos em parte, para a HRS.

Quando as FAA disponibilizaram o dinheiro na conta da Cetofil, Abdul Nassour procedeu ao pagamento de várias dívidas, algumas delas pessoais, afirma o procurador José Hendengwa Tcyiombe, e não remeteu o dinheiro devido à HRS.

É nisto, segundo o despacho que determina a sua prisão preventiva, que consiste o crime de abuso de confiança cometido por Abdul Nassour. O problema é que, nestes factos, não existe qualquer crime de abuso de confiança por parte de Abdul Nasour. Há um grave e grosseiro engano por parte do procurador da República.

O crime de abuso de confiança, conforme estabelecido no artigo 453.º do Código Penal, determina que existe esse crime quando alguém desencaminha ou dissipa, em prejuízo do proprietário, possuidor ou detentor, dinheiro ou coisa móvel que lhe tenha sido entregue para administração ou similar, estando obrigado a restituir o valor equivalente.

Assim, os elementos do crime de abuso de confiança implicam que o suposto criminoso não seja o proprietário do dinheiro e que o queixoso o seja, e ainda que exista uma apropriação do dinheiro por parte do arguido. Um exemplo típico deste crime será o caso de um tesoureiro de um clube de futebol que recebe dinheiro dos sócios do clube e fica com esse dinheiro para comprar umas cervejas para si, em vez de o depositar nas contas bancárias do clube.

No caso em apreço, tais elementos que definem o crime não se verificam. Em primeiro lugar, o dinheiro não é propriedade da queixosa HRS. O dinheiro é propriedade da Cetofil, e é a esta empresa que as FAA pagam. O que existe é uma relação contratual, que tem tutela cível, mas não tem protecção penal, pela qual a Cetofil se compromete a transferir esse dinheiro para a HRS. Haveria um incumprimento contratual, mas não existe qualquer apropriação de dinheiro. Aliás, mesmo em termos cíveis, é muito duvidosa a existência de um direito imediato e líquido da HRS, pois esta nem sequer emitiu uma nota de débito ou documento equivalente, e tudo tem decorrido de modo informal.

O dinheiro que cai nas contas bancárias da Cetofil é, por definição, da Cetofil. Isso é um dado óbvio. E, sendo assim, não é possível falar-se em abuso de confiança. A Cetofil não se apropriou do dinheiro da HRS, porque este dinheiro ainda não era da HRS. Há uma impossibilidade lógica da prática do crime.

O segundo aspecto tem a ver com a conduta concreta de Abdul Nassour. O arguido não rubricou acordo algum com a HRS, não tem qualquer compromisso a título pessoal, nem comprometeu a empresa. O acordo entre a Cetofil e a HRS não se reflecte de modo nenhum na sua esfera jurídica pessoal, portanto, não se percebe como se lhe pode imputar o não cumprimento do acordo. Na verdade, quem assinou o acordo foi o então sócio-gerente César Augusto. Curiosamente, César Augusto foi detido e submetido a interrogatório e depois, obviamente, libertado. Apenas Abdul Nassour ficou preso, não se percebendo a lógica do procurador nesta decisão contraditória, que apenas poderá revelar incompetência ou má-fé. Se repararmos bem, o procurador liberta quem assinou o compromisso e prende quem não tem nada a ver com o mesmo.

Nestes termos, do ponto de vista técnico, não há qualquer facto no comportamento de Abdul Nassour que se traduza numa acção em que ele se apropria de dinheiro pertencente à HRS, porque o montante não é da HRS, mas sim da Cetofil.

Obviamente que se deduz que o procurador José Hendengwa Tcyiombe está a actuar como cobrador de eventuais créditos da HRS através do recurso ao processo penal, ignorando todos os aspectos jurídicos do caso e inventando uma obrigação penal de pagar uma dívida que não existe. E é este aspecto que torna todo o caso tão grave, impedindo que seja ignorado.

Não se pode permitir que procuradores da República sejam manipulados para andarem a cobrar eventuais dívidas de empresas, e ainda sustentados na autoridade do Estado. Isto, além de ilegal, configura um grave abuso de poder.

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