Tony Blair Vai à Guerra em Moçambique

Troam os ecos de guerra em Moçambique. Tony Blair, através do seu influente Instituto para a Mudança Global, veio agora defender publicamente a necessidade da mobilização de uma força militar com soldados africanos. “Se um grupo usa armas, algumas das quais sofisticadas, e mata civis indiscriminadamente, não podemos dizer que não devem ser usados meios militares. A prioridade deve ser a mobilização de militares com recursos suficientes em termos de comunicação, informação e armas para conter a violência e impedir que [os terroristas matem] civis inocentes e conquistem mais território”.

Que a situação militar e de segurança se estava a deteriorar em Moçambique já tínhamos alertado nestas colunas em Abril passado.

Desde então a situação tomou foros globais. Pela primeira vez, o Conselho Nacional de Defesa e Segurança (CNDS) de Moçambique assumiu que o país enfrenta uma “agressão externa perpetrada por terroristas” em Cabo Delgado. E consequentemente intensificaram-se as operações militares na área.

Depois de os mercenários russos mandados por Putin terem aparentemente falhado a sua missão, foi a vez de entrarem em cena os mercenários sul-africanos do Dick Advisory Group, que se fazem transportar de helicóptero, gerando cenas semelhantes às que se vêem nos filmes americanos sobre o Vietname.

Contudo, a presença destes mercenários não parece ser pacífica. Por um lado, algumas notícias dão conta de que em meados de Maio entraram em greve, porque não têm sido pagos, além de recearem ser detidos quando retornarem à África do Sul. Na verdade, alguns académicos experientes têm dúvidas sobre o papel dos mercenários sul-africanos, como o sul-africano André Thomashausen, que afirma: “A presença de mercenários sul-africanos (…) no norte de Moçambique estará a causar apreensão em Pretória e a esfriar as relações entre os dois países (…) porque se procedeu na ilegalidade. E a África do Sul não quer ficar com o nome sujo, havendo antigos soldados, ex-militares do tempo do ‘apartheid’, a criar situações confusas e violentas em países vizinhos, e sem haver realmente um acordo sobre a tal medida.”

Na verdade, esta situação não se resolve com a mera utilização de mercenários. O fenómeno que está a acontecer no norte de Moçambique não é meramente militar ou terrorista. É um misto de terrorismo islâmico aliado a sérios problemas socioeconómicos locais e à recém-descoberta riqueza na zona.

O académico moçambicano Salvador Forquilha foi claro quando recentemente esclareceu que “a insurgência é alimentada por clivagens múltiplas de origem étnica, histórica, social e política”, acrescentando que “o discurso de oposição à ordem estabelecida funciona no sentido de acelerar o descontentamento social e radicalizar clivagens políticas e sociais”, e que “os insurgentes conseguiram estabelecer uma rede eficiente de apoio logístico e informação” graças aos jovens integrados nas comunidades locais”.

A complexidade da situação implica que qualquer estratégia vencedora não seja meramente militar, mas tenha uma componente política forte. Essa componente política tem forçosamente que em simultâneo fortalecer o Estado, mas livrá-lo da corrupção e da falta de interesse pelas populações. É fundamental fazer um trabalho que nos manuais se chama de “mentes e coração”. Quer isto dizer que despejar meia dúzia de helicópteros a voar baixinho pelas praias do norte de Moçambique não vale de nada. É a derrota assegurada. É necessário haver um empenho militar forte, aliado a uma reforma política responsável do Estado em Moçambique. As duas vertentes andam em conjunto.

A percepção de que a situação militar se está a degradar e exige uma rápida e robusta intervenção, não apenas assente em mercenários, mas na mobilização de exércitos com contacto com as populações locais, é o que está na base da intervenção inglesa de Blair, e também possivelmente da nomeação de Fréderic Marbot, um militar francês graduado pela Academia militar de Saint-Cyr para comandar a segurança das actividades da Total em Moçambique. Obviamente, as potências europeias estão preocupadas e a realizar os primeiros movimentos para escorar a situação, que pode redundar na criação de um Estado Islâmico no norte de Moçambique, controlando das mais ricas reservas de gás natural do mundo.

É neste âmbito que entra a SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral), que compreende a África do Sul, Angola, o Botswana, a República Democrática do Congo, o Lesoto, Madagáscar, o Malawi, as Maurícias, Moçambique, a Namíbia, Essuatíni, a Tanzânia, as Seicheles, a Zâmbia, o Zimbabwe. A SADC tem um Comité para a Defesa e Segurança cujo objectivo é coordenar as actividades militares dos seus participantes. Esta estrutura teve bastante relevância na estabilização da situação no Lesoto no final de 2017. O Lesoto viveu uma prolongada crise política, caracterizada por golpes e tentativas de golpes de Estado, queda de governos e eleições antecipadas, bem como o assassinato de dois chefes das suas forças armadas, em 2015 e 2017. Na sequência desses desenvolvimentos, o Governo do Lesoto solicitou a intervenção da SADC, que lançou uma força militar de estabilização em Novembro de 2017. Angola desempenhou um papel preponderante nessa intervenção. Obviamente, foi uma intervenção de baixa intensidade, ao contrário do que será necessário em Moçambique, mas poderá servir de modelo a desenvolver para a necessária intervenção militar em Moçambique.

Contudo, a degradação da situação em Moçambique não se resolve apenas com a intervenção de uma força conjunta da SADC, mesmo que enquadrada por militares ingleses e franceses, que naturalmente têm experiência acumulada no combate ao terrorismo.

É necessário começar a reforma das instituições políticas moçambicanas no sentido de debelar a captura do Estado que aí também se verificou, tal como em Angola, e de fazer chegar os benefícios da riqueza descoberta ao povo. O país não pode ser encarado como propriedade dos seus dirigentes nem ser governado sem atenção às populações. Se tal não for feito, a força militar a constituir não terá efeito útil. Apenas mais devastação e pobreza.

É essa precisamente a grande falha do estudo do Instituto de Tony Blair: esquece-se das condições políticas, económicas e sociais que é preciso confrontar em simultâneo e imediatamente. As preocupações dos analistas são identificadas por tópicos essencialmente ligados a aspectos militares, remetendo para o final uma referência superficial a temas socioeconómicos: “Apoiar o Governo de Moçambique a abordar os problemas socioeconómicos subjacentes do extremismo em Cabo Delgado através de intervenções direccionadas ao desenvolvimento, educação e formação.”

Estamos perante a vacuidade, mas o governo moçambicano, depois do escândalo das “dívidas ocultas” e da sua incapacidade para corresponder minimamente aos anseios da população, não pode continuar a fingir. A governação em Moçambique tem de se reformar, e iniciar uma transformação da sua estrutura e práticas, além de criar um plano abrangente de desenvolvimento social.

Combater a corrupção, aprofundar a democracia participativa, aumentar a redistribuição da riqueza, fazer chegar o progresso ao povo do norte de Moçambique são prioridades que caminham pari passu com o imperativo da intervenção militar alargada para combater o terrorismo. A tropa, como já se aprendeu no Afeganistão e noutras paragens, não chega.

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