O Juízo do Deputado Kapunga

A história da generosidade do deputado Monteiro Pinto Kapunga para com a família foi destruída por uma acusação de feitiçaria e transformou-se numa perseguição à margem de todas as leis. Quando um funcionário o informou de que a irmã supostamente o acusara de feitiçaria, Kapunga enveredou num processo de retaliação e de abuso de poder com vários crimes pelo caminho: abuso de autoridade, cárcere privado, usurpação de imóvel e despedimentos ilegais.

Monteiro Pinto Kapunga é, desde 2012, deputado à Assembleia Nacional pelo MPLA. Na página on-line deste órgão de soberania, o deputado é descrito como sendo administrador-geral da Miamop (que tem sede em Malanje), em flagrante violação do artigo 149.º, n.º 2 b) da Constituição, de acordo com o qual “o mandato de Deputado é igualmente incompatível com o exercício de funções de administração, gerência ou de qualquer cargo social em sociedades comerciais e demais instituições que prossigam fins lucrativos”.

O caso começou quando o chefe de segurança da Miamop, Jorge Cassambua, após ter tido um encontro com a irmã do deputado, Teresa Pinto Kapunga, e o filho desta, Fernando Pinto Bumba, alegadamente informou o patrão de que este fora chamado de feiticeiro pela irmã, acusação que esta desmente. À partida estaríamos perante uma mera desavença familiar, sem relevância para o Maka Angola. Porém, o caso teria desenvolvimentos criminosos, com consequências jurídico-legais, esses sim de interesse público. O Maka Angola enviou um questionário sobre a matéria que hoje publicamos, mas o deputado recusou-se a responder. Naturalmente, reservamos-lhe o direito de resposta.

Quando se sentiu ofendido, em vez de recorrer aos meios legais para reparar a sua honra, o deputado decidiu retaliar recorrendo às forças policiais. Desrespeitando todas normas legais, enviou a polícia para reaver vários bens imóveis que havia entregado à sua irmã Teresa Kapunga, de 68 anos, e sobrinhos. Este processo teve início em 2018, e a última das seis casas que o deputado decidiu recuperar – por sinal, comprada ao Estado pela sua irmã – foi esbulhada a 19 de Maio de Maio passado, durante o estado de emergência. Trata-se de uma casa em estado miserável, no Bairro Hojy-ya-Henda, no município do Cazenga, em Luanda.

A casa esbulhada no bairro Hojy-ya-Henda, Luanda

Note-se que o grupo Miamop, detido pelo empresário-deputado, faz parte da lista de devedores do BPC – em tempos vazada nas redes sociais –, com uma dívida superior a 600 milhões de dólares. Temos então um empresário a movimentar centenas de milhões de dólares e a envolver-se no esbulho violento de uma casa sem condições mínimas de habitabilidade, que nem é sua, num musseque de Luanda.

“O deputado mandou prender”

“Em Abril de 2017, o tio Kapunga ofereceu-me uma casa no bairro Patriota, junto à administração municipal de Belas (Luanda). Deu-me sem documentos e, quando pedi, disse-me para aguardar. Ele é um tio, um pai e irmão. Não podíamos exigir. Hoje diz que não nos conhece”, explica Conceição Bumba, de 48 anos, filha primogénita de Teresa Kapunga.

A 8 de Agosto de 2018, dois agentes do Serviço de Investigação Criminal (SIC) intimaram os moradores da aludida residência a depor na Esquadra do Onga como “invasores” de propriedade alheia. Manuel Albano, de 32 anos e agente da Polícia Nacional, e Hamilton Mascote, de 28 anos, filhos de Conceição Bumba, acompanharam os agentes à esquadra.

A casa no bairro Patriota, oferecida à sobrinha Conceição Bumba

No local, o investigador do SIC André Paulo ligou para o deputado e colocou o telefone em alta voz, dizendo-lhe que estava com os sobrinhos. “Ouvimos o deputado a dizer que não nos conhecia, que éramos invasores, e a dar ordens de prisão”, recorda Hamilton Mascote.

Passados quatro dias, numa das idas de Conceição Bumba à esquadra, para entregar comida aos filhos, os agentes procederam também à sua detenção. “Meteram a minha mãe na mesma sala cela que nós, e informaram-nos que apenas cumpriam ordens do deputado Kapunga”, conta o jovem. “Ouvimos-lhe a dizer ao telefone de um dos agentes que tínhamos de apodrecer na cadeia.”

O mesmo investigador do SIC comandou o despejo da residência enquanto mãe e filhos se encontravam detidos. Os jovens foram libertados 15 dias após a sua detenção. “Após a soltura dos miúdos, fiquei lá mais uns dias, sem entender nada”, diz Conceição Bumba.

O penalista Bangula Quemba considera que “a detenção realizada contra os netos e respectiva mãe constitui um crime de abuso de autoridade – prisão ilegal – (art. 291) e cárcere privado (art. 330), todos do Código Penal”. De acordo com o penalista, o deputado aparece como autor moral dos referidos crimes, cometidos pelos agentes do SIC, os quais também podem ser responsabilizados pelos mesmos crimes.

O assédio do SIC

Desfeita a sua “generosidade”, ainda em 2018, o deputado recuperou outros imóveis localizados em Malanje que havia “oferecido” à sua irmã e aos seus sobrinhos. Além disso, estes contam que o tio ordenou a demissão, sem justa causa, dos seus sobrinhos e netos da sua irmã (num total de seis), que trabalhavam para si, e sem pagamento de salários em atraso, segurança social ou qualquer compensação.

Bangula Quemba garante que “o despedimento laboral sem cumprimento de formalidade que a lei estabelece é ilegal e nulo”.

Na sequência desses actos, as forças do SIC em Malanje passaram a ser usadas para obrigar Teresa Kapunga a entregar a casa onde actualmente reside. Teresa começou a ser regularmente notificada para comparecer nas instalações do SIC, “a fim de tratar assuntos que lhe diz respeito”, exigindo-se a sua presença ora com a “Fátima” (filha) ora com a Rita (filha).

A 11 de Março de 2019, o investigador Filipe de Brito notificou-a para comparecer a 13 de Fevereiro do mesmo ano, ou seja um mês antes de ser informada. O chefe de Departamento de Operações, inspector-chefe Francisco Lopes, autorizou essa absurda diligência com um visto.

Há uma carta da Miamop a pedir a intervenção das autoridades judiciais na contenda com a irmã do deputado. Datada de 9 de Maio de 2019, a carta da Miamop, dirigida ao procurador titular em Malanje, explica que a empresa entregara, havia mais de cinco anos, uma residência de rés-do-chão e primeiro andar “à senhora que atende pelo nome de Teresa Pinto” e explicita que vai construir um condomínio de 300 casas noutro bairro, assim como um instituto superior, e precisa da casa “onde se acha a dona Teresa” para efeitos de uma “clínica para trabalhadores e não só”. “Solicitamos desta feita a vossa intervenção [da PGR] caso haja equívoco por parte da dona Teresa”, lê-se.

“Família é mesmo família, mas este meu irmão está a pôr-me a ferver. Não sei que crime cometi para ele perseguir-me dessa forma e querer ver-me a viver na rua”, desabafa Teresa Kapunga.

Violação do Estado de Emergência

Durante o estado de emergência, o deputado entrou outra vez em acção contra a irmã e filhos desta. Em 1997, Monteiro Kapunga havia trespassado uma casa, na altura propriedade do Estado, à irmã. Esta, por sua vez, adquiriu-a à Comissão Provincial para a Venda do Património Habitacional do Estado, que lhe passou o Termo de Quitação a 10 de Dezembro de 2009. Logo, há 11 anos que a casa é de Teresa Kapunga, de papel passado.

A 18 de Maio último, Hamilton Mascote, na qualidade de neto de Teresa Kapunga, o seu tio Manuel Pinto e um advogado dirigiram-se à 13ª Esquadra da Polícia Nacional, no Hoji-ya-Henda para responder a uma notificação sobre a casa da sua avó nesse bairro. “Explicámos ao procurador e provámos com documentos que a casa é da minha avó. O Sr. Jeoveth, que reclamava a casa como sua, limitou-se a dizer que estava a cumprir ordens do deputado Kapunga. O procurador informou-nos que se tratava de um caso cível, para ser resolvido em tribunal.”

Debalde, os policiais, insatisfeitos com a resposta do procurador transferiram os demandados para o Comando Municipal da Polícia Nacional no Cazenga (conhecido como Comando do IFA), porque no Hoji-ya-Henda “não havia entendidos na matéria”.

“No IFA o comandante exigia a nossa detenção. O procurador disse-nos que o deputado Kapunga insistia em ligar a exigir a nossa detenção, mas se recusou a receber ordens do mesmo”, explica Hamilton Mascote. O procurador João Caluege tinha o mesmo entendimento que o seu colega do Hoji-ya-Henda, tendo referido ser um caso cível para ser tratado em tribunal.

No dia seguinte, a dia 19 de Maio, “o deputado Kapunga, acompanhado por 10 agentes da Polícia Nacional, foi ao Comando do IFA e exigiu que o procurador nos telefonasse para comparecermos no local de urgência, exigia a casa e afirmava não ter irmã”.

Perante a recusa do procurador, conta Hamilton Mascote, o deputado e os dez policiais sob seu comando, cuja unidade se desconhece, dirigiram-se à casa em litígio, arrombaram portas, procederam ao despejo dos inquilinos de Teresa Kapunga e entregaram a casa a Armando Jeoveth, para ocupação imediata.

O advogado José Luís Domingos afirma ter havido “esbulho violento, perturbação do direito de propriedade sobre o imóvel já registado em nome da irmã” e considera, haver “crime de usurpação de imóvel”. E conclui: “Os graves actos que são imputáveis ao deputado impõem à Assembleia Nacional, no âmbito do seu código deontológico, o dever de instaurar o devido processo disciplinar para o apuramento da verdade e das possíveis consequências.”

Custa a acreditar que um deputado proceda desta maneira, fazendo uso e abuso do seu poder e influência e atentando contra as mais elementares regras do bom senso e do direito. É este o juízo de Kapunga, um dos cinco representantes do povo de Malanje na Assembleia Nacional.

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