Covid-19: Decreto Executivo Inconstitucional

O facto consensual é que o presidente da República e o governo agiram rapidamente e bem na reacção à pandemia Covid-19. Não houve hesitações e verificou-se uma determinação atempada para evitar o colapso dos serviços de saúde.

Politicamente, o Executivo deve congratular-se pela eficácia da sua actuação sanitária, que tem sido reconhecida por variadas organizações internacionais, além de que os números não mentem.

Em Angola, há 0,2 mortos por milhão de habitantes devido ao novo coronavírus, uma percentagem inferior a países fronteiriços como a Zâmbia ou a República Democrática do Congo, e manifestamente mais conseguida que a da África do Sul, que é de 22 mortos por cada milhão de habitantes, para não falar de Portugal, com 147 mortos por milhão de habitantes, ou os Estados Unidos, com 351, o Reino Unido, com 608, e o Brasil, com 193 (https://www.worldometers.info/coronavirus/).

Portanto, não há dúvidas de que, apesar de todas as limitações das políticas públicas angolanas, o combate à Covid-19 em Angola tem sido um sucesso conjunto do governo e da população.

Esta boa notícia não deveria ser ensombrada ou perturbada por questões jurídicas menos adequadas e que contribuem para diminuir a confiança da população no sistema político e governativo.

Um exemplo deste tipo de preocupações advém do recente Despacho Executivo Conjunto n.º 177/20, de 9 de Junho. Neste despacho, os ministros do Interior e da Saúde determinam várias medidas em relação ao cordão sanitário de Luanda.

A determinação que levanta perplexidade está contida no artigo 1.º, n.º 1, que interdita a circulação e permanência de pessoas na via pública. Na verdade, através desta norma, limita-se um direito fundamental expressamente previsto na Constituição: a liberdade de circulação. Lê-se no artigo 46.º, n.º 1 da Constituição que: “Qualquer cidadão que resida legalmente em Angola pode livremente fixar residência, movimentar-se e permanecer em qualquer parte do território nacional.” O mesmo artigo refere que tal liberdade pode ser limitada apenas nos casos previstos “na Constituição e quando a lei determine restrições […] para a protecção do ambiente ou de interesses nacionais vitais”. Quer isto dizer que apenas a Constituição e a lei podem impor restrições à liberdade de circulação.

Quando foi decretado o Estado de Emergência, também previsto na Constituição (artigo 58.º), facilmente se percebia que era a própria Constituição a admitir as restrições à circulação. Portanto, o assunto era pacífico. O problema levanta-se na actual situação de Calamidade, que já não tem assento constitucional, mas apenas legal. Onde está a lei que permite que dois ministros proíbam as pessoas de sair de casa e circular em Luanda? Não há, como veremos.

Comece-se por referir que um Despacho Executivo não é uma lei – antes corresponde à formalização de actos dos ministros no exercício de poderes delegados pelo presidente da República (artigo 137.º da Constituição). Por consequência, não é no Despacho Executivo em si mesmo que se encontra a legitimidade para proibir a circulação em Luanda.

Os actos de um ou dois ministros não podem proibir a circulação de toda uma população numa cidade. Para que isto aconteça, tem de ser determinado por uma lei ou consagrado na Constituição.

Já se verificou que a Constituição não tem qualquer provisão sobre a situação de Calamidade.

Vamos observar então a Lei de Bases da Protecção Civil, incluindo a alteração provocada pela recente Lei n.º 14/20, de 22 de Maio. Nesta alteração, é introduzida a definição de “Calamidade Pública” (artigo 2.º) e o artigo 4.º elenca as várias medidas que podem ser tomadas no âmbito desta situação. Entre elas, destacamos as que podem ter relevância para o assunto em causa: b) O exercício da actividade comercial, industrial e o acesso a bens e serviços; c) O funcionamento dos mercados; d) As actividades que envolvem a participação massiva de cidadãos, enquanto existir o risco de contágio ou de insegurança dos cidadãos.

Em lado algum da nova fórmula legal se menciona a interdição, e repetimos a formulação do Despacho Executivo: “circulação e permanência das pessoas na via pública”.

Adicionalmente, o n.º 7 do artigo 4.º da Lei de Bases da Protecção Civil é absolutamente claro ao prescrever que: “As medidas tomadas pelo Presidente da República, enquanto Titular do Poder Executivo, ao abrigo da presente Lei não podem, em caso algum, colocar em causa direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como o artigo 58.º da Constituição da República de Angola.”

Ora, esta norma torna bem legível que a liberdade de circulação pessoal não pode ser restringida numa situação de Calamidade Pública, e que é a própria alteração da lei feita de propósito no mês passado que o determina.

O Despacho Executivo fundamenta-se no Decreto Presidencial n.º 142/20, de 25 de Maio, que declara a situação de calamidade pública, mais precisamente no seu artigo 11.º que define os cordões sanitários. Novamente, em parte alguma desse artigo consta a proibição de circulação. As medidas exemplificadas são: a) Delimitação da área de abrangência do cordão; b) Definição de regras para entrada e saída de pessoas para dentro e fora do cordão; c) Definição de regras para o funcionamento dos serviços, equipamentos sociais, estabelecimentos comerciais e demais instituições existentes no perímetro do cordão.

Não há qualquer referência, como não poderia haver por lei, em relação à manutenção das pessoas em casa e à interdição de circulação.

Resumindo, a determinação de interdição de circulação em Luanda e a obrigatoriedade de permanência em casa que se infere do Despacho Executivo é inconstitucional e ilegal, e está proibida pela nova Lei da Protecção Civil aprovada em Maio último.

Isto não quer dizer que tal interdição não seja necessária, por questões de saúde pública. Mas queremos chamar aqui a atenção para a necessidade de a assessoria jurídica dos mais altos cargos do país ser precisa, metódica e atenta, de modo que não se repitam sistematicamente erros legais que só contribuem para o descrédito das instituições. Obviamente, a circulação pode ser limitada por graves razões de saúde pública, mas tem de existir uma lei expressa a dizer isso. Neste momento, a lei expressa diz o contrário. Fica o alerta.

Comentários