Caso Tomás: Tribunal Constitucional Viola Lei
A inépcia do sistema judicial tornou-se o maior obstáculo à luta contra a corrupção. O nosso compromisso é com Angola e o estabelecimento de uma sociedade próspera, justa e baseada no Direito. Se o presidente da República não reformar o sistema judicial nem modificar a forma como está a combater a corrupção, a sua luta acabará derrotada pelos procuradores e juízes alinhados com o passado.
É neste contexto que não podemos deixar de contestar com veemência o Acórdão n.º 612/2020 do Tribunal Constitucional, que recusou o Habeas Corpus a Augusto Tomás.
A questão não é considerarmos que Tomás não deve estar preso. A questão é, isso sim, que ele só deve ser condenado e preso caso seja declarado culpado através de um processo adequado. O problema está na fundamentação profundamente errada desse Acórdão, que constitui mais um momento inexplicável de desconhecimento do Direito por parte do Tribunal Constitucional.
O Acórdão n.º 612/2020 vai contra lei expressa, o que é de uma gravidade extrema. Os factos são conhecidos. Augusto Tomás foi preventivamente detido a 21 de Setembro de 2018. Por força da alínea c) do n.º 1 do artigo 40.º, conjugada com o n.º 2 e 3 do mesmo artigo, o arguido só poderia ter ficado em prisão preventiva até 21 de Novembro de 2019. A 15 de Agosto de 2019, Tomás foi condenado a pena de prisão no tribunal de primeira instância, e recorreu. A partir daí começa a confusão…
Aparentemente, a decisão do recurso do Tribunal Supremo que confirma a pena de prisão efectiva foi notificada a Tomás a 2 de Dezembro de 2019. Ocorrendo o trânsito em julgado dessa decisão, Tomás deixaria de estar em prisão preventiva e passaria a cumprir a pena a que fora condenado, não se aplicando obviamente os prazos da prisão preventiva, mas sim a execução da pena de oito anos a que fora condenado.
O problema jurídico reside precisamente neste detalhe: quando é que Augusto Tomás deixa de estar em prisão preventiva e começa a estar em cumprimento de pena efectiva?
Ora, a decisão do Tribunal Constitucional que contestamos vem dizer que ele começou a cumprir pena “com a prolação do acórdão do Plenário do Tribunal Supremo [que o condena a prisão efectiva]”, pois “a medida cautelar aplicada se extinguiu, passando o Recorrente a cumprir, desde a data desse acórdão, a pena de prisão” (p. 6 do Acórdão).
Para justificar este entendimento, os juízes conselheiros consideram que é na data do acórdão que se dá o trânsito em julgado da sentença condenatória, e que a interposição de um recurso extraordinário de constitucionalidade não suspende a decisão de condenação a prisão efectiva.
Temos aqui dois erros claros, como aliás fica bem patente nos votos de vencido, sobretudo naqueles proferidos pelo juiz conselheiro Carlos Teixeira, que é muito claro e incisivo, mas também nos das juízas conselheiras Josefa Antónia Santos Neto e Maria da Conceição de Almeida Sango, que têm toda a razão naquilo que escrevem. Aliás, o próprio presidente cessante do Tribunal, Manuel Aragão, também votou vencido, igualmente contrário à interpretação impossível da maioria dos juízes, ainda que em tom mais brando.
Vamos ver os dois pontos essenciais da decisão em que o Tribunal se enganou: i) Quando é que se dá o trânsito em julgado duma decisão judicial? e ii) Qual o efeito de um recurso extraordinário para o Tribunal Constitucional?
O trânsito em julgado não se dá na data da última decisão. Dá-se após passarem os prazos complementares dessa decisão. Imaginemos que não havia nenhum recurso para o Tribunal Constitucional e a última decisão do Tribunal Supremo a condenar Augusto Tomás tinha sido tomada a 2 de Dezembro. Nunca a data do trânsito em julgado seria a 2 de Dezembro. Teria de ser sempre computado o prazo para o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade, a chamada aclaração, ou a reforma quanto a custas e multas (artigo 669.º do Código do Processo Civil). Há uma espécie de dilação automática para estabilizar a última decisão ordinária num processo, e só depois desse prazo se considera haver trânsito em julgado.
Contudo, o trânsito em julgado de qualquer sentença é sempre interrompido se houver um recurso com efeitos suspensivos.
É precisamente isso que acontece no presente caso. A defesa de Augusto Tomás, antes do trânsito em julgado da decisão do Tribunal Supremo, interpôs um recurso extraordinário para o Tribunal Constitucional.
Aqui a lei é clara e expressa. Este género de recurso tem efeito suspensivo. Transcrevo as normas da Lei do Processo: “Artigo 52.º: 1. À tramitação do recurso extraordinário de inconstitucionalidade das sentenças previstas na alínea a) do artigo 49.º da presente lei são aplicáveis as disposições contidas na secção anterior.” Na secção anterior tem relevo o artigo 44.º, que determina: “A interposição do recurso ordinário de inconstitucionalidade: a) tem efeito suspensivo.”
Da conjugação do artigo 52.º com o artigo 44.º da Lei do Processo Constitucional resulta que o recurso extraordinário de sentenças tem o mesmo regime do recurso ordinário, isto é, tem efeito suspensivo.
E o que é o efeito suspensivo? Quando existe efeito suspensivo a decisão impugnada tem os seus efeitos adiados assim que interposto o recurso, qualidade essa que perdura até que transite em julgado a decisão sobre o recurso. Quer isto dizer o seguinte, se existe um recurso extraordinário de inconstitucionalidade da decisão que condenou Augusto Tomás a pena de prisão, essa decisão de condenação fica adiada e não produz efeitos até o Tribunal Constitucional decidir. O efeito suspensivo evita que a decisão recorrida seja executada, não pode ser aplicada à pessoa em causa.
Vamos concretizar, se Augusto Tomás foi condenado pelo Tribunal Supremo a uma pena de prisão a 2 de Dezembro, há um prazo durante o qual esta decisão não transita em julgado e em que pode ser feito um recurso extraordinário para o Tribunal Constitucional, que tem efeito suspensivo. Havendo este recurso, o efeito da condenação fica suspenso e não se pode considerar que Augusto Tomás está a cumprir pena. Nessa medida, tendo passado o prazo da prisão preventiva, o arguido tem de ser libertado até o Tribunal Constitucional decidir, e só nessa altura poderá ser preso novamente e começar a cumprir pena.
Portanto, o Tribunal Constitucional tomou uma decisão contra a lei expressa dos artigos 52.º e 44.º da Lei do Processo Constitucional.
Esta problemática demonstra o que temos defendido: não é possível combater com eficácia a corrupção com a presente organização judiciária, com a presente lei processual e com a presente lei substantiva. Para se ter êxito, como todos desejamos, tudo deve ser mudado.
Não se combate a corrupção de José Eduardo dos Santos com as leis de José Eduardo dos Santos, os procuradores de José Eduardo dos Santos e os juízes de José Eduardo dos Santos. É impossível!