A Nova legislação do Tribunal Constitucional

Está em curso uma revisão da legislação que estrutura a organização e o processo do Tribunal Constitucional, designadamente a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei n.º 2/08, de 17 de Junho e alterações subsequentes) e a Lei do Processo Constitucional (Lei n.º 3/08, de 17 de Junho e alterações subsequentes).

O Tribunal Constitucional, mantendo o espírito do professor austríaco Hans Kelsen, que concebeu este sistema, é o guardião fundamental da Constituição e dos direitos e liberdades dos cidadãos. Assim, qualquer alteração ao seu normativo fundamental deve ser escrutinada com a máxima atenção.

Comecemos pela nova proposta de Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

Como o nome indica, esta lei determina de que modo o Tribunal Constitucional se organiza e exerce a sua actividade – é uma espécie de guia para o comportamento dos juízes. Por sua vez, a Lei do Processo, que veremos no final, irá orientar os advogados que desejem submeter os seus casos ao escrutínio deste tribunal.

A nova Lei Orgânica, naturalmente, apresenta variadas normas com muito interesse. Mas queremos destacar dois conjuntos de normas que despertam atenção especial.

O primeiro conjunto é o que consta dos artigos 42.º, 43.º e 146.º. O artigo 42.º, com a epígrafe “Início e cessação de funções”, estabelece as condições em que os juízes começam a exercer o seu magistério e o terminam. Este aspecto é fundamental, pois remete para uma dimensão essencial da actividade dos juízes: a sua independência e imparcialidade. Para que os juízes sejam imparciais e independentes, não pode haver dúvidas acerca de como iniciam o seu mandato e, sobretudo, como e quem pode terminá-lo. Sempre que possível, o fim de um mandato deve ser determinado por causas objectivas, como a duração, a idade e outros factores semelhantes.

Na verdade, o artigo 42.º, n.º 2 disporá o seguinte: “As funções dos Juízes do Tribunal Constitucional cessam no termo do mandato e após a tomada de posse dos Juízes que os substituem.” Acrescentando o n.º 3 que: “Antes do termo do mandato, as funções dos Juízes do Tribunal Constitucional só podem cessar quando se verifique qualquer das situações seguintes: a) morte ou impossibilidade física permanente; b) renúncia; c) aceitação de cargo legalmente incompatível com o exercício das suas funções; d) demissão ou aposentação compulsiva, em consequência de processo disciplinar ou criminal; e) ter atingido o limite de 70 anos de idade.”

Esta lei resolve finalmente um ponto já amplamente discutido no Maka Angola: as necessárias consequências de um juiz alcançar 70 anos de idade.

A presente lei resolve a questão no sentido que aqui já defendemos: a jubilação de um juiz implica a cessação do seu mandato no Tribunal Constitucional. Esta determinação é reforçada pelo artigo 43.º, n.º 1: “No decurso do mandato as funções dos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional cessam nos termos do estabelecido no n.º 3 do artigo 42.º da presente lei.”

Concretamente, fica solucionada a dúvida sobre a cessação de funções do juiz Aragão como presidente do Tribunal Constitucional, pois o artigo 146.º, no âmbito das disposições transitórias, dispõe: “Os Juízes do Tribunal Constitucional que se encontrem em funções na data de entrada em vigor da presente Lei e que tenham de cessar as funções por atingirem o limite de idade fixado na alínea e) do n.º 3 do artigo 42.º adquirem imediatamente o direito à jubilação beneficiando dos direitos e deveres estabelecidos na presente lei.”

Torna-se claro, com a entrada em vigor desta lei, que Manuel da Costa Aragão terá de cessar imediatamente as suas funções como presidente e juiz do Tribunal Constitucional. Uma situação que, em nosso entender, já devia ter ocorrido a 16 de Abril passado. A questão fica agora resolvida por imperativo legal.

Um segundo conjunto de normas que merece atenção, e que é inovador face à lei em vigor, encontra-se plasmado a partir do artigo 112.º, dizendo respeito ao regime disciplinar dos juízes conselheiros, cujo regime geral é estabelecido no artigo 41.º, n.º 1: “Compete exclusivamente ao Tribunal Constitucional o exercício do poder disciplinar sobre os seus Juízes.”

Na lei de 2008, não havia qualquer menção ao regime disciplinar dos juízes conselheiros. As suas normas encontravam-se no Regulamento Geral do Tribunal Constitucional (Resolução 21/14, de 28 de Julho), no qual a presente proposta de lei se vai inspirar. Importa sublinhar que a nova lei, tal como o anterior Regulamento, prevê que o Tribunal Constitucional possa suspender e demitir um dos seus membros, caso este cometa uma infracção disciplinar. Note-se que esta possibilidade é uma excepção ao princípio da inamovibilidade. Na realidade, uma maioria de juízes pode expulsar um juiz com que esteja descontente.

A consagração deste mecanismo na Lei afasta eventuais dúvidas acerca de existir um mero Regulamento a permitir o afastamento de um juiz do Tribunal Constitucional. Essa possibilidade regulamentar parecia francamente inconstitucional.

Agora, também este aspecto é clarificado, o que se reveste de uma importância prática. No passado, houve ampla discussão sobre o comportamento de determinados juízes, e, mesmo que esse comportamento fosse obviamente pernicioso, argumentava-se sempre que ninguém podia fazer nada até ao fim do mandato, pois os juízes são inamovíveis. Na verdade, são-no, mas nos termos da lei (Artigo 179.º, n.º 2 da Constituição). Portanto, parece cristalino que um Regulamento não poderia prever a demissão de um juiz; no entanto, uma lei já pode, e é essa precisão que se faz nesta Lei. Já não há desculpas para se manterem juízes com comportamentos indecorosos: agora podem legalmente ser sujeitos a um processo disciplinar e demitidos.

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Altura agora para uma breve nota sobre aquela que parece ser a principal alteração da outra Lei, a Lei do Processo Constitucional. O ministro da Justiça anunciou que os “recursos para o Tribunal Constitucional passam a ser restritos a matérias jurídico-constitucionais e aquelas que afectem direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, acrescentando que serão fixadas as condições precisas da utilização deste recurso e assegurando que os particulares acederão a esta instância apenas depois de esgotados todos os recursos antes admissíveis.

Aqui, aparentemente, quer-se seguir o que já se fez em Portugal, há uns anos na tentativa de limitar o recurso ao Tribunal Constitucional, que de facto nesse país se estava a tornar uma quarta instância de recurso. Aí foi introduzido, para limitar os recursos, o artigo 78.º-A na Lei do Processo Constitucional, que permite um exame preliminar e a decisão sumária do relator. Na verdade, estabelece o n.º 1 desse artigo português o seguinte: “Se entender que não pode conhecer-se o objecto do recurso ou que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada, o relator profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal.” Esta norma permitiu vedar o Tribunal Constitucional português a muitas das questões que se lhe colocam, limitando bastante a sua intervenção na defesa concreta dos direitos e liberdades fundamentais do cidadão.

Com a bandeira da celeridade na justiça, não foi uma decisão feliz, pois a prática tem revelado o uso intenso dessa norma por parte do Tribunal Constitucional, muitas vezes sem a necessária ponderação das situações concretas em causa.

Em Angola, ainda é mais perigosa a introdução dessas limitações. É evidente que tem de existir celeridade processual, mas esta não deve acontecer menorizando as possibilidades de recurso e o acesso dos cidadãos à defesa dos seus direitos.

Enquanto os Tribunais da Relação não estiverem a funcionar, pelo menos, não deveria ser limitado o acesso ao Tribunal Constitucional. E, mesmo depois disso, dever-se-ia ter muita atenção. Em países com sistemas judiciários frágeis, sujeitos a intervenção política e com uma magistratura habituada a ser dependente, não faz sentido restringir as liberdades legais e diminuir o acesso à justiça constitucional por parte dos cidadãos. Portanto, esta medida é manifestamente perturbadora dos direitos, liberdades e garantias constitucionais dos angolanos, e neste momento não é defensável. Terminamos com este alerta sobre os perigos da limitação do recurso para o Tribunal Constitucional na defesa das liberdades e direitos fundamentais dos cidadãos.

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