Incompetência: a Gestão dos Financiamentos Internacionais da Saúde

O grande problema de Angola não é (nem foi) a falta de dinheiro. É a incompetência e a rapacidade das classes dirigentes, que inviabilizam a gestão eficiente dos recursos disponibilizados no país. Um exemplo flagrante é o que está a acontecer com os financiamentos do Fundo Global de Combate à SIDA, Tuberculose e Malária.

O Fundo Global de Combate à SIDA, Tuberculose e Malária é uma organização internacional de financiamento e parceria que tem como objectivo atrair, alavancar e investir recursos adicionais para acabar com as epidemias de SIDA, tuberculose e malária, e é o maior financiador mundial de programas de prevenção dessas doenças. A organização iniciou suas operações em Janeiro de 2002 e conta com financiadores como o fundador da Microsoft, Bill Gates. Em Junho de 2019, a organização havia desembolsado mais de US$ 41,6 mil milhões para apoiar esses programas.

Muito desse dinheiro foi para Angola, onde, como se sabe, a malária é a principal causa de morbidade e mortalidade, com a população inteira em risco de infecção. Infelizmente, o que resultou foi um fiasco de esbanjamento e aplicação indevida das verbas. Desde 2004, Fundo Global investiu cerca de 300 milhões de USD em Angola. No entanto, estes investimentos tiveram impacto muito reduzido na luta do país contra as três doenças, com a maioria dos indicadores a subirem, em vez de descerem. Desde 2010, os casos de tuberculose terão aumentado 19%, e as mortes 17%; as mortes relacionadas com a SIDA em Angola aumentaram 29%, em contraste com uma diminuição mundial da mortalidade de 34%. As mesmas tendências negativas verificam-se na malária, cuja incidência entre 2010 e 2017 aumentou 48%, acompanhada de uma subida das mortes em 72% durante o mesmo período.

Face a estes resultados desastrosos da saúde em Angola, o Fundo Global, através do seu inspector-geral, procedeu em 2019 a uma auditoria relativamente ao uso das verbas destinadas por esta entidade ao país. As conclusões foram muito desanimadoras para a política e gestão da saúde de Angola. O ponto essencial é que não há qualquer política, nem gestão racional no sector da saúde.

A auditoria concluiu que o baixo desempenho das doações internacionais resulta de não se saber quem detém o quê (em jargão técnico, fracos direitos de propriedade), de falhas do governo em cumprir compromissos domésticos, da inexistência de dados fiáveis ​​e de estruturas de gestão eficazes no Ministério da Saúde.

Para fazer face a este fiasco, o Fundo Global adoptou várias regras novas, a primeira das quais foi cancelar a entrega de mais verbas até que sejam implementadas medidas suficientes para garantir a utilização eficaz dos financiamentos.

Em concreto, detectou-se que em Angola não existe qualquer sistema fiável de recolha de dados na saúde. Não se sabe o que se passa na realidade, e isso tem obviamente impacto sobre a capacidade de o Ministério da Saúde tomar decisões estratégicas e operacionais informadas e avaliar o desempenho das intervenções. Estes problemas abrangem todas as áreas da gestão – sistemas, processos e pessoas – e afectam todos os implementadores.

Quando não se conhece, não se pode agir, porque não se sabe sobre o que se está a agir. Por exemplo, a estratégia nacional do Sistema de Informação para a Gestão da Saúde (SIGS) foi elaborada em 2015 e não aborda os desafios actuais em matéria de dados juntamente com a visão estratégica e as exigências de recursos para melhorar os dados sobre a saúde em Angola, reporta a auditoria.

A isto acrescem lacunas significativas em matéria de pessoal de monitorização e avaliação. Neste caso concreto, não foram preenchidas vagas para as quais havia financiamento do Fundo Global. É o problema de sempre: recebe-se o dinheiro e não só ele é mal gsto como muitas vezes é apropriado para fins privados.

Outro aspecto devidamente enfatizado na auditoria do Fundo Global é a coordenação deficiente no Ministério da Saúde. Por exemplo, Angola é o 11.º país do mundo com a maior incidência estimada de infecção dupla por tuberculose e SIDA, mas possui o segundo nível mais baixo de co-gestão de tuberculose e SIDA da África Austral e Oriental. Apenas 62 unidades de saúde prestam serviços relativos à tuberculose e à SIDA em balcão único. A colaboração deficiente entre as várias secções do Ministério da Saúde contribui para este fraco desempenho.

A isto se soma o facto de não haver estratégias de envolvimento das comunidades e de o governo sistematicamente não cumprir os compromissos que assume internacionalmente para combater as três doenças.

Por sua vez, a falta de coordenação do ministério e o incumprimento do governo criam estrangulamentos ao nível da implementação das medidas e prejudicam a supervisão e a gestão eficazes das subvenções do Fundo Global.

Em geral, o financiamento do governo, o envolvimento da comunidade e a implementação programática para assegurar o acesso aos serviços são ineficazes.

Estão aqui em causa questões sistémicas, impossíveis de resolver por meio de correcções tácticas pouco ambiciosas. Elas exigem uma reformulação abrangente dos programas de subvenções do Fundo Global em Angola, afirmam os auditores do Fundo. Por estas razões, o Fundo decidiu cancelar as doações até obter uma resposta adequada do governo face às incapacidades demonstradas.

Refira-se que o governo, através da ministra da Saúde, assinou um termo de compromisso com o Fundo em que se compromete a tomar as medidas necessárias para pôr cobro às graves deficiências encontradas, bem como a devolver 444 mil dólares. Após o cumprimento deste acordo, Angola voltará a ser elegível para receber doações. Entretanto, como acima referido, todos os financiamentos ficaram suspensos, contrariamente ao veiculado nalgumas versões mais optimistas.

Terminamos como começámos. O grande problema de Angola não é a falta de dinheiro, é a corrupção e incompetência que se auto-alimentam. Há que mudar em definitivo o pessoal político ministerial que gere mal este país.

Nota: Todas as informações foram retiradas do Relatório de Auditoria das Subvenções do Fundo Global na República de Angola, GF-OIG-20-003, 12 de Fevereiro de 2020 Genebra, Suíça disponível online em https://www.theglobalfund.org/en/oig/updates/2020-02-27-global-fund-grants-in-angola/

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