Estado de Emergência: Prioridade para os Mais Desprotegidos

Santa Muacabinza, de 43 anos, solteira, sustenta sete filhos e dez netos com a venda de coxas de galinha em Cafunfo, no município do Cuango. O estado de emergência e as medidas de confinamento social têm prejudicado a sua capacidade de alimentar a família.

“Nós, aqui em Cafunfo, estamos sempre a ser corridas. A polícia não permite que vendamos nas ruas e nem sequer nos mercados. Agora, cada um faz o seu negócio em casa. Mas, às vezes, a Polícia entra em nossas casas quando sabem que estamos a vender, para destruir o negócio”, descreve a vendedeira.

Já Maria Necas, 52 anos, mãe de oito filhos, conta que a sua colega Rachel foi chicoteada por um soldado das Forças Armadas quando vendia pão no Mercado de Sassa Tchokwé, às sete horas de terça-feira passada. “Esse Mercado é reconhecido pela administração municipal e temos autorização do Estado para vender às terças, quintas e sábados, das 6h00 às 13h00”, explica a vendedeira.

“Mas os agentes da Polícia Nacional e das Forças Armadas estão sempre a atacar-nos, a chicotear-nos e a impedir-nos de sustentar as nossas famílias”, denuncia.

O administrador municipal do Cuango, Guilherme Cango, discorda da informação: “Em princípio os mercados funcionam de acordo com o Decreto Provincial, mas se há alguma actividade da Polícia que contraria esse decreto, então apelamos para que este órgão adopte uma postura mais cívica no relacionamento com a população.” E sublinha: “Por sua vez, a população tem de cumprir também com as medidas tomadas pelo governo.”

O governador provincial da Lunda-Norte, Ernesto Muangala, visitará o referido município no próximo fim-de-semana. “Vou considerar isso como uma reclamação da nossa população e transmitirei ao senhor governador para que se tomem medidas adequadas, no encontro que terá com o comando municipal da Polícia Nacional”, diz Guilherme Cango.

Por seu turno, o pastor Teixeira Vinte, secretário-geral da União Norte da Igreja Adventista, tem observado que os agentes da Polícia Nacional apresentam um comportamento moderado, tentando prestar o seu serviço o melhor possível. Porém, de entre todos os funcionários públicos, serão porventura os que enfrentam piores condições de trabalho. “Dói-me ver a polícia sem água, de pé, horas seguidas. Assim não têm cabeça para ser harmoniosos. A sociedade deve compreender o papel da polícia, que também está sobrecarregada. Já vi cadetes apenas munidos com cassetetes a serem insultados por transeuntes pelo simples facto de não terem outras armas”, desabafa o pastor.

Um agente da Polícia Nacional, que prefere o anonimato, partilhou as suas preocupações com o Maka Angola: “A nossa maior dificuldade é fazer compreender às populações que têm de cumprir com o confinamento social. Há muita falta de respeito por parte de cidadãos que, quando a Polícia os aconselha, respondem mal e agressivamente, o que cria tensões.”

A principal nota da reunião do Conselho da República, realizada hoje no Palácio Presidencial, é que o governo tem de encontrar “uma situação de equilíbrio entre o confinamento social e a fome”.

Como era esperado, o estado de emergência será prorrogado, no próximo domingo, por mais 15 dias. Como medida de desagravamento das restrições, conforme informações obtidas por este portal, os mercados deverão funcionar de terça-feira a sábado, com o domingo e a segunda-feira reservados para limpeza e saneamento.

Outra medida importante de desagravamento é a circulação interprovincial e nocturna de mercadorias.

O Conselho da República também apela para que se faça uma interpretação correcta do decreto que estabelece o estado de emergência, de modo que a sua aplicação não seja desigual nem dependa do entendimento subjectivo dos agentes da autoridade. De facto, este ponto é essencial para que sejam abandonados os comportamentos inadequados de alguns agentes da autoridade (como os que aqui expomos) e se generalize o cenário positivo de combate à epidemia, cujos resultados o Conselho se orgulha no seu comunicado.

É preciso não esquecer que, quando se mede o impacto de medidas de contenção da epidemia ou da actuação dos agentes da autoridade, tem de se tomar como parâmetro não o cidadão mais favorecido, mas o mais vulnerável, o que mais sofre.

O filósofo político norte-americano John Rawls propôs um exercício a que se chamou o véu da ignorância: quando os governantes decidem, devem imaginar que não sabem nada sobre os talentos, as habilidades, os gostos, a classe social e as posições que ocuparão numa dada ordem social. Poderão ficar na pior situação de todas. Numa sociedade de escravatura, poderão ser escravos. É nessa ignorância, sem saberem que posição irão ocupar, que deverão tomar as decisões políticas. Sabendo que tanto podem ser senhores como escravos, deverão proteger ao máximo a posição do escravo.

Agora, é preciso aplicar este véu da ignorância a Angola. Os decisores políticos, nomeadamente o presidente da República, têm de tomar as suas opções considerando os interesses dos mais vulneráveis. Só assim se conseguirá uma sociedade justa, evitando que os efeitos da pandemia COVID-19 se tornem ainda mais tenebrosos. Nesse sentido, são de encorajar iniciativas como o encontro entre o presidente da República e alguns membros das igrejas e da sociedade civil, anunciado para a próxima semana, com o objectivo de “tomar o pulso” à situação e proteger os mais vulneráveis.

A isto se aliam as medidas logísticas e técnicas que têm sido tomadas. Desde o início da pandemia, segundo dados obtidos pelo Maka Angola, o governo alocou uma quota financeira adicional de 20 mil milhões de kwanzas para a aquisição de material de biossegurança.

Até à data, segundo dados oficiais, o governo tem 1448 camas preparadas em todo o país, 152 das quais com ventiladores, para tratamento da COVID-19. Para o efeito, foram treinados perto de sete mil técnicos de análises clínicas e socorristas.

Segundo um membro de Comissão Multissectorial de Prevenção e Combate à Pandemia, o serviço de saúde conseguiu alargar a sua capacidade de realização de 90 testes diários para um total de 600. “Temos como meta chegar aos três mil testes diários em breve, com os apoios que vamos recebendo de várias instituições nacionais e internacionais”, refere a fonte.

Desde Março, o governo submeteu um total de 2746 cidadãos à quarentena institucional, dos quais 1279 em Luanda. Já a quarentena domiciliar, segundo dados oficiais, abrangeu mais de 63 mil cidadãos em todo o país.

Confortados com os números apresentados e acreditando no esforço institucional que está a ser feito, é fundamental que as decisões sejam tomadas em função das pessoas mais vulneráveis. Só assim poderemos combater a COVID-19 com um esforço de cidadania integral, e não através de manifestações de autoritarismo serôdio.

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