A Fumaça de Isabel dos Santos e a Dívida de US$ 5 Mil Milhões

Quando foi divulgada a “notícia” de que na origem do arresto de bens de Isabel dos Santos estaria um passaporte falso com a assinatura de Bruce Lee, que teria sido admitido como prova em tribunal, tudo parecia uma comédia. Mas qualquer jurista sabe que os documentos juntos num processo por uma das partes não são fundamentação de decisão, mas sim elementos que podem ou não ser considerados pelo juiz. No caso concreto, da leitura da decisão de arresto de 23 de Dezembro de 2019 feita pela juíza Henrizilda do Nascimento, do Tribunal de Luanda, concluía-se que não existia qualquer referência a um passaporte de Bruce Lee.

Contudo, Isabel dos Santos não é uma comediante. O que explica, então, a invenção de tal história? É só fumaça, pois o evento marcante que esta farsa actualmente encobre é a descoberta judicial de que José Eduardo dos Santos (JES), enquanto presidente da República, emitiu uma garantia soberana de 120 milhões de dólares a favor da SODIAM, para que esta obtivesse um empréstimo junto do banco BIC (pertença da sua filha) com vista a financiar os negócios privados do genro e da filha. No caso, a compra da DeGrisogono.

O pai (JES) assegurou que o Estado garantisse o financiamento do genro através do banco da filha para comprarem uma joalharia suíça. E agora o banco quer receber do Estado, que só teve prejuízos com o negócio.

Além do mais, na mesma decisão judicial, conclui-se que Isabel dos Santos deve ao Estado angolano quase 5 mil milhões de dólares.

Tudo isto consta de uma sentença de 11 de Maio de 2020, tomada no processo n.º 33/20-A na 2.ª secção da Sala do Cível e do Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, lavrada pela juíza Regina Sousa.

Esta Sentença decreta uma providência cautelar pedida pelo Ministério Público angolano contra o Banco BIC, Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e Mário Leite da Silva, proibindo o banco BIC de “cobrar ao Estado e a sua empresa pública SODIAM E.P. qualquer prestação referente ao contrato de mútuo e respectivas adendas, celebrados com aquela empresa pública (SODIAM EP) até a decisão final da acção principal”.

A narrativa subjacente a esta decisão, e que a juíza dá como provada, é a história da apropriação indevida, por Isabel dos Santos e seus associados, de muitos milhões de dólares do erário público, para aplicação no negócio dos diamantes.

Antes de mencionar os vários eventos que o tribunal deu como indiciariamente provados para decretar a providência a favor do Estado, é importante sublinhar o principal facto dado como provado: Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e Mário Leite da Silva provocaram um prejuízo ao Estado angolano no valor de US$ 4.920.324.358,86 (quatro mil novecentos e vinte milhões, trezentos e vinte e quatro mil, trezentos e cinquenta e oito dólares e oitenta e seis cêntimos) [cfr. páginas 19 e 33 da Sentença].

Bem se percebe que este valor de quase 5 mil milhões de dólares é superior à fortuna estimada de 3 mil milhões de dólares de Isabel dos Santos, pelo que, tecnicamente, se o Estado angolano ganhar a acção definitiva, Isabel estará insolvente.

Como chegou o tribunal a este valor? A resposta encontra-se nas páginas 14 e 19 da sentença, que passamos a resumir. No essencial, o tribunal considera que Isabel dos Santos e os seus associados beneficiaram de vários negócios lucrativos com o Estado, tendo ficado com os respectivos lucros e o Estado com os prejuízos. Esses negócios envolveram a SODIAM (diamantes), a SONANGOL (petróleo) e a ENDE (electricidade).

No caso dos diamantes, está em causa a compra da empresa suíça DeGrisogono com fundos do Estado e todo o conjunto de financiamentos subsequentes. Terá sido Mário Leite da Silva quem, em 2010, alertou Isabel dos Santos e Sindika Dokolo para a oportunidade de negócio da compra dessa empresa que estava em falência técnica. Ponderando a possibilidade, terão levado a ideia a José Eduardo dos Santos, então presidente da República, que imediatamente deu instruções à SODIAM para investir na empresa suíça.

Em 2010, foi constituída a Victoria Holding em Malta, que tinha como sócios a SODIAM (por parte do Estado), Isabel dos Santos e Sindika Dokolo através de sociedades-veículo. Depois foi criada a Victoria Limited, que continha a Victoria Holding e Sindika como sócios. Mário Leite da Silva era o director-geral das companhias.

É esta Victoria Limited que surge na linha da frente a assinar acordos com Fawaz Gruosi, então dono da DeGrisogono, com vista à sua aquisição. Entretanto, a SODIAM rubricara um acordo parassocial com as empresas de Isabel e Sindika em termos muito favoráveis para estes, dando-lhes todo o poder. Contudo, é a SODIAM que em 14 de Fevereiro de 2012 contrai um empréstimo com o banco BIC no valor de 120 milhões de dólares para financiar a DeGrisogono.

Uma pausa para clarificar o que a sentença afirma: Isabel dos Santos e Sindika tomam o poder na joalharia de luxo DeGrisogono com dinheiro obtido pela empresa estatal SODIAM, que fica devedora do banco de Isabel (BIC). Se repararmos, os factos dados como provados na sentença indicam que Isabel ganha duas vezes. Recebe dinheiro da SODIAM para comprar a empresa suíça e tem a SODIAM a pagar esse empréstimo com juros ao seu banco.

Além do mais, José Eduardo dos Santos emite, através do Despacho Presidencial n.º 20/12, de 23 de Fevereiro, uma garantia soberana do Estado, de forma a assegurar que o Estado pagaria a dívida ao BIC. Depois de receber o dinheiro do BIC, a SODIAM transferiu-o em várias parcelas para a Victoria de Sindika.

A este financiamento inicial sucederam-se outros similares ao longo dos tempos, que são devidamente detalhados na sentença (p. 16). Contudo, embora a SODIAM fosse a financiadora de Isabel e Sindika, nunca recebeu qualquer dividendo, nem participou na gestão da DeGrisogono. Limitava-se a pagar.

Obviamente, em 2018 a SODIAM teve de alterar a sua postura, e começou a interpelar a Victoria Limited no sentido de esta pagar de volta o dinheiro avançado. A empresa de Sindika recusou-se a devolver o que quer que fosse e alegou que tinha tido sempre prejuízos.

Este negócio desastroso para o Estado angolano faz parte de uma panóplia de negócios também ruinosos que Isabel, Sindika e Mário Silva fizeram utilizando as várias empresas públicas acima referidas – SODIAM, Sonangol e ENDE –, afirma a sentença do Tribunal Provincial de Luanda.

É da soma dos prejuízos que estas operações importaram, adicionada aos investimentos directos que o Estado fez nos negócios privados deste grupo, que resulta o valor próximo dos 5 mil milhões de dólares. Valor que o Estado afirma ir cobrar numa acção de fundo.

A decisão da juíza Regina Sousa aborda também variadas questões de direito que trataremos noutro texto. Por agora, é ainda importante sublinhar alguns outros aspectos específicos relevantes da sentença. A juíza é extremamente crítica do comportamento de Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e Mário Leite Silva. Citando o presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto professor de Direito, a juíza angolana considera que Isabel e os seus associados agiram como déspotas “em nome de uma ordem superior, de carácter racional, não tiveram em conta que existe em Angola uma ordem societária”. Acrescentando mais abaixo que a “estatalidade do Direito [foi] foi usada pelos Requeridos Isabel dos Santos e Sindika Dokolo em proveito próprio”. Isto quer dizer que Isabel e Sindika privatizaram a soberania, utilizaram os poderes do Estado para seu proveito pessoal. Palavras fortes e indignadas da juíza.

De referir que, para fundamentar a sua decisão, a juíza enumera uma longa lista de provas documentais que ocupa as páginas 38 a 41, não fazendo qualquer sentido alegar que tudo foi decidido por causa de um “passaporte de Bruce Lee”.

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