Queixas de Pilhagem de Alimentos no Ministério do Interior (Parte 2)

Os efectivos-fantasma

Além do esquema já descrito na primeira parte desta investigação, envolvendo sobretudo o Grupo Carrinho, outros esquemas de desvio e roubo de alimentos estavam devidamente montados e em marcha, com a conivência de altas instâncias governamentais. É sobre eles que falaremos agora.

O segundo esquema de desvio de bens já ocorria dentro do próprio Ministério, após a chegada dos alimentos remanescentes. Segundo Malembe, o comissário Vietname, seu superior, criou uma lista de 1576 efectivos-fantasma na sua Direcção de Logística, inseridos na rubrica “Protocolo”, a quem destinava parte dos alimentos, como se comprova por meio da análise dos Planos de Abastecimento Mensais. Na realidade, os efectivos reais apenas eram 192. Mais tarde, depois de uma inspecção que verificou essas irregularidades, o número de efectivos-fantasma desceu de 1576 para 1500!

“Sinto-me revoltado com o facto de o comissário Vietname ter-me ordenado, em Junho de 2016, a exclusão de 200 deficientes de guerra do plano de abastecimento mensal, alegando crise financeira. Foi nessa altura que me ordenou a inserção de mais de 1500 fantasmas no plano de abastecimento”, denuncia Malembe.

E prossegue: “Depois de ter processado essa exclusão, levei os representantes dos deficientes ao gabinete do comissário Vietname, que lhes repetiu de viva voz o corte do abastecimento mensal de víveres a que tinham direito.”

Quanto aos fantasmas, a 9 de Novembro de 2017, o comissário Vietname determinou a sua inserção nos seguintes termos: “Para permitir apoios sociais dos funcionários e actividades administrativas para 1500 efectivos.” Com esta decisão, segundo o denunciante, foram desviados um total de 297,2 toneladas de produtos alimentares diversos ao longo de oito meses.

“Estive nas trincheiras de guerra no Cuando-Cubango. Tenho o sentimento de melhor servir a tropa. Não posso ver roubos e os meus homens a passar fome”, desabafa Malembe.

Saque no refeitório

Importa referir ainda a situação referente a dezenas de toneladas de bens alimentares oficialmente destinados à copa da Polícia, inscritos nos Planos de Abastecimento na rubrica “Refeitório da Direcção de Logística”, mas que, na realidade, forneciam uma operação comercial dentro das instalações da Polícia, onde os bens alimentares serviam para confeccionar pratos que eram vendidos a 1300 kwanzas cada, numa operação explorada pela chefe do Departamento de Finanças da Direcção de Logística.

A 20 de Novembro de 2017, o comissário Sebastião Cambinda “Vietname” ordenou o levantamento de 10,3 toneladas mensais de víveres para abastecimento da copa da Direcção de Logística, conforme documentos consultados pelo Maka Angola.

Desvios directos

Entre Junho e Setembro de 2017, conforme informação especial do Serviço de Investigação Criminal (SIC), registou-se o desvio de 863,2 toneladas de bens alimentares da Direcção de Logística do MININT. Desse valor total, o desvio de 21 toneladas foi imputado por “anuência” ao denunciante, na altura superintendente-chefe, Oliveira João António “Malembe”.

Em Junho de 2017, houve desvios directos de 203 toneladas de bens alimentares diversos dos armazéns da BCA, no Quilómetro 25, em Viana, então chefiados pelo superintendente Domingos Pedro Neto. Os produtos desviados em maiores quantidades foram: óleo vegetal, salsichas e arroz. Em Julho do mesmo ano, o saque dos bens alimentares baixou para 199 toneladas. O produto mais desviado foi o açúcar, seguido do arroz e do chouriço e salsichas. No mês seguinte, a pilhagem disparou para 320 toneladas, com predominância do açúcar, seguido do óleo vegetal e do arroz. Veja-se a tabela abaixo, com as toneladas discriminadas:

  Junho Julho Agosto Setembro /Outubro
Óleo vegetal 26,2 14,5 36,3 7,2
Arroz 22,8 19,5 36 8
Salsicha 22 14,5 27 7
Açúcar 17,5 19,6 44,2 10,2
Feijão 17,8 12,7 34,4 2,4
Farinha de milho       8

O então chefe do Departamento de Bens Alimentares e Meios Técnicos (DBAMT), ora superintendente Oliveira João António, denunciou o saque durante os referidos meses.

O relatório da inspecção-geral do MININT, acedido pelo Maka Angola, apenas menciona os desvios do mês de Junho, acrescentando que os mesmos ocorreram nesse período “em que o director de logística esteve em gozo de licença disciplinar”. Malembe denuncia que esses roubos ocorreram sem o seu conhecimento.

“Praticamente fui exonerado nesse mês de Junho, pelo inspector-chefe Nelson Nascimento do Abreu, chefe de Informação e Análise da Direcção de Logística, que ficou a interinar no lugar do comissário Vietname. Em Agosto, tive um AVC e estava na Namíbia a tratar-me quando houve o maior desfalque. Já nada passava por mim”, salienta.

Despromoção, exoneração e luta

João António Malembe Malembe, ex-responsável de Bens e Alimentos da Direcção de Logística do Ministério do Interior

“Por ter denunciado os roubos na logística do Ministério do Interior, o camarada Ângelo Tavares instaurou-me um processo disciplinar, exonerou-me do cargo e fui despromovido em um grau, de superintendente-chefe para superintendente”, Malembe. Alude aqui ao despacho n.º 001/GAB.MININT/2018 (despromoção) de 30 de Maio, e 022/GAB.MININT/2018 de 21 de Junho (exoneração).

A 31 de Janeiro de 2019, no uso do contraditório junto do jornal O Crime, o comissário referiu ao inquérito da Inspecção-Geral que “concluiu serem infundadas e caluniosas” as denúncias feitas pelo aludido oficial e que “o superintendente Oliveira João António, aproveitando-se do cargo que exercia como chefe do Departamento de Bens Alimentares da Direcção de Logística, fez o descaminho de avultadas quantidades de bens alimentares para benefício próprio”.

Sebastião Cambinda alegou ainda desconhecimento do processo n.º 01/PGR/SIC-CE/18, em que é participado o referido comissário, por “até ao momento não ter recebido qualquer notificação a respeito”.

A 23 de Março de 2018, Agostinho Kapapelo Kalukembe, subprocurador-geral da República junto do SIC – Crimes Económicos, encaminhou o referido processo-crime para a Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP), em que “são visados cidadãos nacionais, o comissário Sebastião Cambinda “Vietname” e outros, por prática do crime de peculato”.

Por sua vez, a 27 de Março de 2018, o coordenador-adjunto do DNIAP, João Luís de Freitas Coelho, remeteu o processo em causa ao procurador-geral da República, Hélder Pitta Gróz, “para decisão da pertinência ou não de ser autuado como processo-crime nesta DNIAP”.

Com efeito, a 12 de Abril de 2018, o PGR despachou o processo (com o n.º 00000 238/GAB.PGR/2018) para a Procuradoria Militar das Forças Armadas Angolanas (FAA). “Trata-se de possíveis infracções cometidas no exercício de funções do comissário Sebastião Cambinda ‘Vietname’. Remeta-se à PMFAA”.

Em Junho de 2018, em dia não especificado, o superintendente Malembe diz ter contactado pessoalmente o então procurador militar adjunto e actual vice-procurador-geral da República para a Esfera Militar, general Filomeno Octávio da Conceição Benedito.

“Foi o general Filomeno Benedito quem me informou directamente ter visto o processo-crime [01/PGR/SIC-CE/18] e encaminhou-me ao procurador militar junto do Comando-Geral da Polícia Nacional [PN], brigadeiro Dirceu, que o tinha em mãos”, explica o superintendente Malembe.

“Em vez de o brigadeiro dar continuidade ao processo, já com o despacho do PGR, abriu um outro expediente, tendo-me interrogado das 9h00 às 14h00, e sem ter atribuído um número de processo”, reclama.

A 9 de Outubro de 2018, o persistente oficial da PN remeteu uma “declaração de descontentamento” à PGR pelas voltas que estavam a ser dadas às duas denúncias.

Por sua vez, a 15 de Outubro do mesmo ano, o vice-procurador-geral da República, Mota Liz, reencaminhou a “declaração de descontentamento” ao então vice-PGR para a Esfera Militar, general Adão Adriano António, sob o ofício n.º 127.

“Só depois de o PGR nos ter recebido em audiência, em Maio de 2019, ficámos a saber que já tinha remetido o caso à Procuradoria-Militar, há mais de um ano”, remata o denunciante.

Estranhamente, mesmo depois de ter recebido o despacho do seu superior sobre o processo em questão e das investigações anteriores da Inspecção-Geral do MININT, do SIC e da remessa da DNIAP, o general Adão Adriano António decidiu enrolar.

Passados dez dias sobre o ofício de Mota Liz, o general Adão Adriano António decidiu, por meio do ofício n.º 000127/GAB.VPGR/ML/18, o seguinte:

“Ao chefe da Repartição de Fiscalização da Legalidade na Investigação e Instrução Criminal para instauração de procedimento criminal, pelas graves denúncias constantes neste expediente. Cria uma excelente equipa de trabalho recorrendo à PJM (Polícia Judiciária Militar) ou a outros instrutores da PMFAA, que poderão vir das regiões, para a concretização do trabalho.”

O superintendente Malembe comenta: “Para ver a malandrice, essa repartição abriu mais um outro processo e eu fui ouvido, a 1 de Novembro de 2018, em interrogatório outra vez. Esse processo foi registado com o nº 11/2018.”

Passadas duas semanas, a 14 de Novembro, o presidente João Lourenço nomeou o comissário Sebastião Cambinda “Vietname” para exercer, cumulativamente, os cargos de director de Logística do MININT e do Comando-Geral da Polícia Nacional.

O superintendente Malembe reafirma todas as suas denúncias e clama por justiça.

Da nossa parte cabe, para além do trabalho de investigação, dar voz aos cidadãos que contribuam de forma séria e responsável, com as suas denúncias, para a probidade que se requer na gestão dos bens públicos.

Comentários