Queixas de Pilhagem de Alimentos no Ministério do Interior (Parte 1)

Oliveira João António, também conhecido como “Malembe” (na foto principal), é um veterano e um herói da primeira linha de combate das históricas batalhas do Cuíto-Cuanavale, no Cuando-Cubango. Nos últimos anos tem enfrentado, de forma inglória, o que diz ser uma “batalha contra a corrupção” no Ministério do Interior. Foi despromovido de superintendente-chefe a superintendente, e foi afastado do cargo de chefe do Departamento de Bens Alimentares e Meios Técnicos (DBAMT) da Direcção de Logística do Ministério do Interior (cargo que exerceu entre 2014 e 2018).

Enquanto chefe do DBAMT, Malembe insurgiu-se contra o que alega serem vários esquemas complexos de pilhagem de grande parte dos alimentos destinados às forças da lei e da ordem, levados a cabo entre 2016 a 2018.

Do lado oposto ao superintendente-chefe Malembe perfilava-se o director nacional da Direcção de Logística do Ministério do Interior, comissário Sebastião Cambinda “Vietname”, sob comando do então ministro do Interior Ângelo Tavares.

A quantidade de alimentos reportados como desaparecidos do sistema oficial é de milhares de toneladas, e não é necessário explicar por que razão é fundamental manter alimentados as polícias, as prisões, os quartéis e os veteranos deficientes. Basta vermos as imagens actuais em circulação nas redes sociais, mostrando dois militares em patrulha que aproveitam o estado de emergência agora decretado em Angola para literalmente roubar o bocado de peixe que uma cidadã com o bebé às costas levava para casa.

Muitos desses alimentos – como arroz, farinha de milho, massa alimentar, bolachas, feijão, carne congelada, chouriço, salsichas e óleos alimentares – são vendidos a preços inflacionados nos mercados paralelos de Luanda, conforme nota da própria Inspecção-Geral do Ministério do Interior (MININT).

De acordo com documentos consultados pelo Maka Angola, identificam-se três tipos de esquemas de furto de alimentos. Primeiro, a apropriação “à cabeça”, por parte de empresas privadas comerciais, de pelo menos 40% dos bens, antes mesmo de serem entregues ao MININT. Segundo, verifica-se a criação de efectivos fantasma no seio da Direcção de Logística do MININT, de modo a justificar saídas de alimentos. Finalmente, de forma mais modesta, há o abastecimento do refeitório da Direcção de Logística, que serve como expediente para uns desvios.

A posição oficial do MININT

O Maka Angola contactou o comissário Vietname com vista a obter a sua versão dos factos, mas o encontro marcado não aconteceu, devido ao estado de emergência. “Devido a restrições que nos são impostas face às medidas de segurança Covid-19, devemos reprogramar o encontro ou remeter-me por via do gabinete de S. Ex. o Ministro do Interior os dados da informação que pretende”, lê-se na mensagem do comissário.

Eis então a posição oficial.

O director do gabinete de comunicação institucional e de imprensa do MININT, subcomissário Waldemar José, informa o Maka Angola de que a denúncia do superintendente Malembe “foi levada muito a sério, em especial pelo actual ministro”.

“Para demonstrar total imparcialidade, encaminhou-se as denúncias aos órgãos internos e à PGR. Não podemos interferir com o caso, uma vez que já se encontra sob alçada dos órgãos judiciais”, defende o subcomissário Waldemar José.

“Certamente, a seu tempo, a PGR se pronunciará publicamente em função dos resultados da instrução processual”, remata o porta-voz do MININT.

O carrinho de compras

Esta investigação trata do “desaparecimento” de 646 contentores do primeiro lote (PO-001) de entregas de bens alimentares da Kingbird ao Grupo Carrinho, e de mais 510 contentores cativados pelo mesmo grupo, obedecendo a um despacho do ministro Ângelo Tavares. São, no total, 1156 contentores do MININT que, de acordo com o superintendente Malembe, reverteram a favor do Grupo Carrinho.

Ora, o Grupo Leonor Carrinho é uma empresa sedeada no Lobito, província de Benguela, pertencente a Leonor Lusitano Candundo Carrinho e aos seus filhos Nelson Fidel, Rui Alves e Elsa Violeta Candundo Carrinho.

O superintendente Malembe nota como, em 2016, a logística estava de tal forma depauperada que a presidência da República dispensou, do seu “saco azul”, cem toneladas de arroz ao Comando-Geral da Polícia Nacional para acudir a situações de emergência. Este, por sua vez, afirma o oficial, concedeu-os de empréstimo à Direcção de Logística do MININT, para assegurar a alimentação dos reclusos em todo o país.

Na mesma altura, Leonor Carrinho, por via da Trading Kingbird Commodities, recebeu 646 contentores de bens alimentares diversos, num total de 16 mil toneladas, para a logística do MININT. O superintendente Malembe insiste que esses alimentos nunca deram entrada no Ministério.

“Como tomámos conhecimento? Ficámos a saber através de um documento da própria Kingbird, endereçada ao ministro Archer Mangueira, a 3 de Janeiro de 2017.”

Nesse documento, a Kingbird especificou que entregou até 28 de Dezembro de 2016 as 16 mil toneladas de alimentos, conforme a tabela abaixo.

“Todo o 2016 estivemos praticamente sem comida, com sérias dificuldades logísticas”, refere o superintendente.

Produto Quantidade (toneladas) Contentores Data do último carregamento Data da última entrega
Arroz 4800 181 11/12/2016 28/12/2016
Açúcar 3456 128 27/10/2016 28/11/2016
Massa 800 30 24/10/2016 07/12/2016
Fuba de milho 1000 47 30/10/2016 28/12/2016
Óleo vegetal 2000 96 10/11/2016 17/12/2016
Farinha de trigo 3000 127 29/11/2016 26/12/2016
Coxas de frango 1000 37 27/10/2016 28/12/2016

A 15 de Setembro de 2016, o director-geral do Grupo Leonor Carrinho, Nelson Fidel Candundo Carrinho, escreveu ao então ministro do Interior Ângelo Tavares a solicitar a reconciliação de contas de Janeiro a Agosto do referido ano. A empresa reclamava ter entregado bens alimentares no valor acima de dez mil milhões de kwanzas, tendo apenas recebido pagamentos no valor de 7,6 mil milhões.

Nelson Carrinho solicitava o pagamento do valor remanescente, admitindo um desconto de 3,1 mil milhões de kwanzas da linha de crédito de 4,2 mil milhões atribuída a si pelo Banco Angolano de Investimentos (BAI) e destinada à aquisição – no mercado local – de bens alimentares para o MININT. Em dólares, o desconto proposto era equivalente a perto de 19 milhões de dólares.

Consequentemente, a Carrinho dispunha-se apenas a entregar produtos no valor de 1,1 mil milhões de kwanzas. Ângelo Tavares determinou, em despacho de 3 de Novembro de 2016, que “as deduções deverão ser feitas, se autorizadas, no processo da empresa Kingbird”.

Documentos verificados pelo Maka Angola, de suporte às declarações do superintendente Malembe, dão conta de que Leonor Carrinho inicialmente chamou a si parte das importações da Kingbird. Perfaziam um total de 10 500 toneladas de alimentos, distribuídas por 510 contentores. Segundo o superintendente, “esses contentores, contrariando os procedimentos estabelecidos, foram enviados directamente para o Porto do Lobito, em Benguela, onde se situa o referido grupo”.

Se discriminarmos a mercadoria, temos: 7000 toneladas de arroz, 300 toneladas de coxas de frango, 1500 toneladas de feijão preto, 1200 toneladas de óleo. Isto representa 70% da mercadoria, no valor de 19 milhões e 300 mil dólares, conforme correspondência de Leonor Carrinho dirigida a Ângelo Tavares, a 5 de Abril de 2017. Com a referência n.º 075/GLC/DIR.GER/2017, Nelson Fidel Candundo Carrinho, director-geral do grupo, assinou a carta.

A 12 de Maio de 2017, realizou-se uma reunião entre o MININT e o Grupo Leonor Carrinho. Este encontro deu origem a uma acta assinada pelo próprio comissário Vietname, pelo representante do grupo, Rui Carrinho, pelo então chefe do Departamento de Bens Alimentares, Oliveira João António “Malembe”, e pelos seus dois oficiais, Afonso Quiala Gomes e Terêncio.

Ângelo Veiga, ex-ministro do Interior

“Quanto aos programas [de abastecimento] PO-003/C e PO-003/D, a empresa [Grupo Leonor Carrinho] procedeu às deduções em obediência ao Despacho de S. Ex. o Ministro do Interior, recaindo a nota sobre a nota n.º 12072/GAB.DIR.MININT/2016 de 3 de Novembro de 2016, tendo ficado com todos os produtos do referido programa”, lê-se na acta.

“Inicialmente, houve de facto essa intenção, mas foi indeferida pelo MININT em relação à linha do BAI e foi igualmente indeferida pelo MINFIN em relação a linha Kingbird, o que, consequentemente, nos obrigou a proceder à entrega na totalidade de todos os produtos, conforme espelha nossa carta do dia 14, com a ref.ª 151/GLC/DIR.GER/2017”, responde o grupo.

Trata-se da correspondência, com data de 14 de Julho de 2017, através da qual Nelson Fidel Candundo Carrinho comunicou ao comissário Vietname ter entregado a totalidade da mercadoria acima referida à logística do MININT.

O superintendente Malembe insiste na sua versão e no que está lavrado em acta. “Na verdade, a empresa Leonor Carrinho ficou com os produtos contidos no PO-003, apenas fez entrega, à Direcção de Logística do MININT, da ração fria (33 mil unidades)”.

A versão de Carrinho

Em nota enviada ao Maka Angola, o Grupo Leonor Carrinho sublinha que esta investigação nada tem de novo, “pois já mereceu tratamento pela PGR, Inspecção-Geral do MININT, vários semanários, TV Zimbo, etc. e sempre estivemos abertos para esclarecimento dos factos”. E prossegue: “Não é verdade que, ao longo dos sete anos de relação [com o MININT], a nossa empresa alguma vez tenha retido qualquer produto. No entanto, na altura propusemos ao MININT a dedução da dívida a partir da linha [de crédito], com vista a diminuir a avultada dívida existente.”

Segundo o gabinete jurídico do grupo, as deduções através dos fornecimentos da Kingbird (linha de crédito da Gemcorp) só teriam sido possíveis com autorização do Ministério das Finanças: “No encontro que tivemos com a Direcção de Logística para abordar a matéria foi-nos informado que, por um lado, a questão da dívida estava a ser tratada pelo MINFIN (Ministério das Finanças) e, por outro, foi-nos recomendado que não fornecêssemos os nossos produtos a terceiros, pois o MININT necessitaria dos mesmos no âmbito do processo eleitoral que se avizinhava.”

O Grupo refere ter tido conhecimento do despacho do MINFIN, segundo o qual a linha de crédito “bloqueada” só “poderia servir para facilitar a abertura de cartas de crédito com o propósito único e exclusivo de compra de bens alimentares, pelo que, não sendo legalmente possível a dedução, a mesma nunca chegou a ser efectivada”.

“Gostaríamos de acrescer que não é verdade que, nos últimos sete anos, o MININT alguma vez tenha estado numa situação de grave crise alimentar, sendo que a empresa, com grande esforço, acumulando grande dívida com os seus fornecedores, em atenção ao interesse público e natureza da operação, sempre cumpriu a 100 por cento. O MININT está em condições de confirmar esse facto.”

Sobre a missiva com a referência n.º 075/GLC/DIR.GER/2017, enviada pelo Grupo ao Ministro do Interior, e referente aos descontos, Leonor Carrinho desmente: “Não é verdade.”

Explica ainda que a correspondência em questão “é referente ao ofício 0966/382/DPE/DPF/MININT/2016. A mesma não se referia a nenhuma intenção de desconto da dívida (temos a carta disponível), mas sim a uma carta procedimental no acto da linha [de crédito] uma vez que a responsabilidade da retirada das mercadorias, chegadas aos portos em Angola, era do MININT, a quem cabia notificar o MINFIN. À empresa [Leonor Carrinho] competia somente fazer a entrega”.

Sobre a acta de 12 de Maio de 2017, que lavrou os descontos inseridos nos programas PO-003/C e PO-003/D, o grupo justifica-se assim: “No encontro tido com o chefe de departamento de Logística e, por na altura não se conhecer o posicionamento da superestrutura do MININT, concluiu na dedução das quantidades de produtos a fornecer, tenho-se produzido a acta inicial, mas tendo na mesma data sido conhecido o posicionamento da Direcção do MININT, que indeferiu a pretensão manifestada.”

“Prontamente realizou-se nova reunião, que originou mais tarde a nossa carta com ref.ª 151/GL/DIR.GER/2017, da qual resultou a acta final e os respectivos suportes de entrega total da mercadoria”, afirma o grupo. Ademais, o Grupo Leonor propõe-se permitir ao Maka Angola que verifique “in situ”, nos seus escritórios no Lobito, toda a documentação. Certamente não perderemos tal oportunidade, logo que seja levantado o estado de emergência.

O Grupo aproveita esta ocasião para denunciar “pessoas de má-fé que, desde a inauguração da nossa fábrica em Benguela, procuram denegrir-nos”. Cita ainda as dificuldades que as empresas nacionais enfrentam, em particular o referido grupo, com a dívida pública. “O estado angolano detém uma dívida avultada que pode pôr em causa a nossa nobre aposta no processo de diversificação da economia, da produção local dos produtos da cesta básica e da criação de milhões de postos de trabalho, directos e indirectos”, lamenta.

Os 40% por 15 quilómetros

Contudo, além disso, um outro expediente de remoção prioritária dos abastecimentos foi executado. As mercadorias chegavam do estrangeiro e eram descarregadas no Entreposto Aduaneiro de Luanda.

Para remover as mercadorias do Entreposto, o Ministério do Interior, dirigido por Ângelo Tavares, comissionou quatro empresas: a Leonor Carrinho, a Azinor, a Robetra & Filhos e a K & DJ.

A Robetra & Filhos pertence a Santana André Pitra “Petroff”, antigo ministro do Interior e comandante-geral da Polícia Nacional.

A Azinor tem como sócios os portugueses de origem moçambicana Nazir Sadru Din, Azim Mahamade Sadrudin Cassam Jamal e Salimo Hacamo Jamal.

Por sua vez, a K & DJ Importação e Exportação, SARL é uma empresa ligada a Catarino dos Santos, que foi alto funcionário da Casa de Segurança do presidente da República.

Em Fevereiro de 2017, no âmbito do processo de aquisição de bens alimentares para o MININT, foram alocados a estas empresas um total de 41,4 milhões de dólares. Os fundos foram disponibilizados pela linha de crédito do BAI e por facilidade de crédito da Gemcorp Capital.

Desse valor total, o Grupo Leonor Carrinho ficou com mais de metade, 24,8 milhões de dólares, enquanto a Azinor absorveu 12,4 milhões de dólares, e a Robetra & Filhos e a K & DJ quedaram-se com dois milhões de dólares cada uma.

O trabalho destas empresas, neste segundo esquema, consistia em transportar as mercadorias entre o Entreposto e a base central de abastecimento do Ministério sita no Cacuaco, pela Via Expresso, num percurso de aproximadamente 15 quilómetros.

Supostamente, para cobrir os custos de transporte (15 quilómetros!), cada empresa foi autorizada a descontar à cabeça 40% dos fornecimentos.

O facto de este procedimento não ser adequado ficou bem patente na acta da reunião com a empresa de Leonor Carrinho, realizada entre autoridades policiais e representantes da companhia comercial, a 12 de Maio de 2017, referente aos fornecimentos da Kingbird/Gemcorp. Nessa acta, a empresa reconhece ter-se inicialmente apropriado de 40% do valor programado, e comprometeu-se a devolver essa diferença. Isto mesmo foi assumido por Rui Candundo Carrinho, director-adjunto da empresa.

Em reacção, o grupo refere ter procedido à “a entrega cabal” das mercadorias, sem reter 40% das mesmas como pagamento.

“Temos disponível toda a documentação referente à abordagem do assunto, bem como os comprovativos sobre o cumprimento cabal das entregas dos produtos contratados, que poderá consultar a qualquer momento, pois, como compreenderá, constituem documentos que, por um lado, envolvem uma entidade pública, cuja imagem deveremos respeitar e, por outro, resultam de uma relação contratual e por isso protegidos pelas regras de confidencialidade. Ainda assim, julgamos que elas podem ser consultadas nos nossos escritórios”, explica a nota do grupo.

“Devolveram a quem? Há documentos na Direcção de Planeamento de Finanças do MININT sobre o pagamento desses 40%”, denuncia, por sua vez, o superintendente Malembe.

Na mesma acta, foi ainda lavrado que, além do Grupo Leonor Carrinho, as outras empresas envolvidas no transporte de víveres do Entreposto para a BCA, no tal trajecto de 15 quilómetros, também cativavam 40% dos víveres como pagamento pelo transporte.

Concluímos aqui a primeira parte desta investigação. Mas a história do desvio ilícito de alimentos não termina aqui, e em breve explicaremos como decorriam os outros esquemas e como Malembe foi castigado por estas denúncias.

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