FMI: a Dívida e a Força de Angola

No passado dia 13 de Abril, Kristalina Georgieva, directora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), anunciou um alívio imediato do serviço da dívida para 25 países vulneráveis, como parte da resposta do FMI para ajudar a lidar com o impacto da pandemia covid-19.

Durante seis meses, esses países receberão subsídios para pagar as suas dívidas. O apoio do FMI é viabilizado através de contribuições de várias nações, designadamente a recente promessa de 185 milhões dólares do Reino Unido e 100 milhões de dólares fornecidos pelo Japão, recursos que deverão fica imediatamente disponíveis. A China e a Holanda, entre outros, também se prestaram a avançar com quantias significativas.

Os países beneficiários a contemplar são: Afeganistão, Benim, Burkina Faso, República Centro-Africana, Chade, Comores, República Democrática do Congo, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Haiti, Libéria, Madagáscar, Malawi, Mali, Moçambique, Nepal, Níger, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Ilhas Salomão, Tajiquistão, Togo e Iémen.

Um primeiro comentário em relação a esta medida é que não é suficientemente estruturante, pois parece indicar apenas um adiamento ou congelamento de pagamentos por seis meses, o que no grande esquema das coisas é um pequeno paliativo.

Mas não é esse o aspecto mais relevante. O ponto óbvio é que Angola não faz parte da lista dos países “perdoados” pelo FMI, pelo que mantém intactos os seus encargos com a dívida. Em si mesma, a ausência de Angola da lista não é negativa, antes corresponde ao reconhecimento da força e da capacidade da economia e do governo angolanos. Essa capacidade também costuma ser reconhecida ao Ruanda, mas este país aparece na lista – será que, afinal, o governo de Paul Kagame não tem sido tão brilhante, do ponto de vista económico, como se pensa?

Não surgindo Angola na lista dos “perdões” do FMI, tal facto deve ser tomado pelo governo como uma oportunidade para reequacionar o seu serviço da dívida. O país não precisará de “perdões”, pois não é um caso económico de “lixo”, dir-se-á. Mas deverá utilizar a força que, aparentemente, a comunidade internacional lhe está a reconhecer. E, nesse sentido, este é o tempo de tomar medidas negociais para aliviar o peso da dívida pública no orçamento geral do Estado.

Consequentemente, aproveitando o espírito do tempo, o governo – em colaboração com os seus parceiros externos – deve tomar imediatamente várias iniciativas de aligeiramento da dívida. A atual sensibilidade dos parceiros externos para proporcionar melhores condições da dívida a Angola é fundamental.

Medidas de alívio da dívida angolana

A primeira dessas iniciativas deve ser a transformação da dívida de curto prazo em dívida de longo prazo e com juros mais baixos. O governo deve encetar um programa de troca de dívida. Se tem de pagar hoje 10, passará a pagar esses 10 em 10 anos, garantindo taxas de juro baixas nessa troca, e aliviando assim a tesouraria pública.

A segunda iniciativa será tentar comprar dívida angolana no mercado com desconto, o que é uma forma de a reduzir. Imaginemos que foram emitidos títulos com um valor facial de 10. Poderia ser possível negociar a sua compra por 8, havendo assim um ganho.

Uma terceira medida seria a negociação com os países que já se mostraram disponíveis para apoiar o FMI, como os acima referidos Reino Unido, Japão, China e Holanda, que permitisse reescalonar a dívida a esses países, designadamente com a China. Se a China é generosa com Moçambique e com o Ruanda, por maioria de razão deve sê-o com Angola, onde tem obtido tantas vantagens.

Também a eventual dívida de Angola a organizações internacionais deveria ser revista e anulada na maior parte dos casos.

A questão da “dívida odiosa”

Finalmente, este é o momento para efectuar uma revisão geral da dívida pública angolana e para a verificação concreta das situações em que poderá ter havido fraude ou intento criminal na contracção da dívida pública.

Neste caso, poder-se-ia utilizar um conceito discutido no direito internacional público, que é o da “dívida odiosa”. A “dívida odiosa” é aquela contraída por um regime sem legitimidade ou em condições criminais, e é admitido que não seja necessariamente paga, fazendo essa possibilidade de não pagamento parte daquilo que a os juristas internacionalistas chamam os “princípios gerais de direito das nações civilizadas” (ver Robert Howse, The Concept of Odious Debt in Public International Law, UNCTAD, 2007). Em 1927, o jurista Alexander Sack escreveu que essa dívida “não é uma obrigação para a nação; é uma dívida de regime, uma dívida pessoal do poder que incorreu nela”. Um exemplo abstracto. Se porventura tiver havido dívida pública para beneficiar Isabel dos Santos ou outro, devem ser eles a pagar a dívida, e não o Estado.

Um exemplo histórico muito pertinente de não pagamento de “dívidas odiosas” ocorreu com os Estados Unidos da América no final do século XIX. Em 1898, após a Guerra Hispano-Americana, a Espanha cedeu a soberania dos Estados Unidos sobre Cuba, Filipinas, Porto Rico e alguns territórios. Os americanos recusaram-se a assumir certas dívidas devidas pela Espanha, garantidas pelas receitas de Cuba. As autoridades americanas argumentaram que os empréstimos não tinham sido contratados em benefício dos cubanos; pelo contrário, alguns dos fundos foram utilizados para suprimir revoltas populares em Cuba e reincorporar Santo Domingo nos domínios espanhóis. Os empréstimos foram utilizados para finalidades hostis às pessoas que os tinham de pagar, por isso não seriam pagos. A verdade é que os norte-americanos nunca assumiram esses empréstimos e não os liquidaram.

Uns anos mais tarde, numa arbitragem entre a Grã-Bretanha e a Costa Rica acerca de dívidas contraídas por um antigo ditador deste país, o juiz norte-americano Howard Taft confirmou a regra sobre a intransferibilidade de “dívidas odiosas”.

Não entrando em discussões demasiado técnicas sobre a questão, pode assumir-se que no direito internacional, quer em termos de relações Estado a Estado, quer nas relações entre Estado e privados, existe a possibilidade de não pagamento das “dívidas odiosas”, quando o pagamento ofenda os princípios fundamentais do direito das nações, como é o caso de dívidas públicas contraídas para interesses privados, para repressão popular ou com recurso a práticas criminosas.

É neste âmbito que Angola deve rever a sua dívida e anular as “dívidas odiosas” que eventualmente detenha, em concerto com as nações parceiras, aproveitando o tempo de reelaboração do sistema económico e financeiro internacional que vai ocorrer após a covid-19.

Em resumo, a ausência de Angola da lista de países “perdoados” pelo FMI é uma boa notícia, pois dá força ao governo para renegociar de modo consensual e paritário um significativo alívio da dívida pública.

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