Turbulência na Justiça e a Necessária Reforma do Sistema

Ao canalizar o combate à corrupção para os órgãos judiciais, João Lourenço colocou este sector debaixo de um intenso foco de luz, e o que se tem visto é uma confusão. São várias as histórias de maus procedimentos no sector da Justiça. Vamos falar sobre duas que demonstram que algo vai muito mal no reino das becas e togas pretas.

A participação criminal do juiz conselheiro Agostinho Santos contra o presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo

Um primeiro acontecimento está relacionado com a nomeação do juiz Manuel Pereira da Silva, o dito “Manico”, para presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE). O último facto na cadeia de eventos perniciosos para a justiça foi a apresentação de uma queixa-crime por parte do juiz conselheiro Agostinho dos Santos contra o seu colega presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, pelo facto de este ter enviado informações falsas, de acordo com a participação criminal, à Assembleia Nacional, as quais permitiram que esta prosseguisse com a posse do “Manico”.

Agostinho Santos diz o seguinte: “As falsas e dolosas informações prestadas pelo Participado [Joel Leonardo] tiveram por fim enganar os deputados à Assembleia Nacional para que estes empossassem o juiz de Direito Manuel Pereira da Silva para o cargo de Presidente da Comissão Nacional Eleitoral.”

É evidente que a acusação é gravíssima. Agostinho Santos é peremptório ao afirmar que Joel Leonardo mentiu deliberadamente ao poder legislativo, perturbando assim o normal funcionamento das instituições do Estado.

Tudo isto nos deixa perplexos. Os juízes deveriam ser a reserva moral da nação, destacando-se pelo seu equilíbrio e ponderação, obrigados a um certo dever de reserva, e afinal o que temos aqui são dois colegas que se sentam diariamente no mesmo tribunal mantendo uma disputa extremamente desonrosa para a magistratura e sua credibilização. Há, naturalmente, um inconformismo levado ao extremo por parte de Agostinho Santos, e uma inaptidão, e talvez arrogância, no exercício do poder por parte de Joel Leonardo.

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu”, ensina a Bíblia, em Eclesiastes 3:1. E este tempo será o da necessária intervenção do chefe de Estado enquanto supremo magistrado da nação para devolver a normalidade ao funcionamento institucional. Ou seja, exercer aquilo que na doutrina constitucional se chama a “magistratura de influência” presidencial, no sentido de pôr fim a esta contenda e propor uma solução consensual para os respectivos órgãos no que diz respeito aos termos desta disputa.

A agressão aos advogados

Um outro acontecimento tem a ver com o exercício da advocacia. Está prevista uma marcha para o próximo dia 14 de Março, convocada pela Ordem dos Advogados de Angola e destinada a denunciar o que apelidam de “actos de violação dos direitos, prerrogativas e garantias do exercício da advocacia”. O que deu origem a esta convocatória e mobilização foi a detenção do advogado estagiário Eugénio Marcolino, em Benguela, no passado dia 24 de Fevereiro. Contudo, segundo a Ordem, têm-se sucedido outras actuações das autoridades que colidem com as liberdades e os direitos dos advogados.

Os advogados são tão importantes num tribunal como os juízes e os procuradores. O desrespeito pelos advogados é equiparável à violação da Justiça. A descrição do que aconteceu ao Dr. Eugénio Marcolino é arrepiante. Também aqui a ponderação tem de voltar a ser a palavra-chave: o papel de cada um deve ser devidamente dignificado.

O sistema de justiça criminal compõe-se de três partes: o juiz, o procurador e o advogado de defesa. Cada parte deste sistema desempenha um papel específico.

O papel do juiz é tomar uma decisão imparcial com base unicamente nos factos apresentados e nas leis aplicáveis. Para decidir imparcialmente, o juiz deve poder ouvir argumentos de ambos os lados.

O papel do procurador é representar o lado do Estado, que procura provar a culpa do arguido.

O papel do advogado de defesa é argumentar em nome do arguido. O arguido não tem ónus de prova. Ou seja, o arguido não precisa de provar a sua inocência. Basta apenas apontar maneiras pelas quais o Estado não estabeleceu a culpa. Assim, o papel do advogado de defesa é importantíssimo para a protecção do cidadão e não pode ser atropelado por ninguém. O juiz e o procurador não são aliados contra o advogado. Cada um tem o seu próprio papel.

A necessária reforma da Justiça

Quer a disputa extrema entre juízes conselheiros quer os maus tratos a advogados no interior do sistema são sintomas de que a actual Justiça não está preparada para lidar com as mudanças que têm vindo a ocorrer em Angola. Naturalmente, não se pode fechar a Justiça e remodelar tudo, como se faria no caso de um edifício em ruínas. A Justiça tem de continuar a funcionar, não pode parar.

Ainda assim, a reforma da Justiça é fundamental e premente. Os poderes legislativo e executivo têm de dedicar atenção, dentro das suas competências próprias, à urgente reestruturação do sistema judicial. Essa reestruturação começa pela renovação dos quadros.

A maior parte dos juízes que serviram o antigo regime trabalharam num quadro de falsa independência, clientelismo e autoritarismo institucional. É essa pressão organizacional que tem de ser extinta definitivamente.

Juízes orientados para o serviço público, com sentido de independência e imparcialidade, são muito necessários. A renovação da sua formação e entrada na magistratura é uma fundamental exigência do novo paradigma que o presidente João Lourenço quer instaurar.

Assim, há que rever e modernizar a formação dos juízes no INEJ (Instituto Nacional de Estudos Judiciários) e preparar uma actualização das normas de acesso à carreira que permitam mais transparência, a participação da sociedade civil e que premeiem o mérito e a competência.

A reforma da Justiça começa pelas pessoas que a compõem: pelos juízes.

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