Desconcentração do Poder, Combate à Corrupção e Desenvolvimento*

Honra-me bastante o convite do governador Muangala, bem como a calorosa recepção, para dialogar com V. Ex.as, membros do governo provincial e altos funcionários públicos da Lunda-Norte, sobre a corrupção e alguns dos desafios que o nosso país e esta província em particular enfrentam.

Agradeço antecipadamente ao Sr. governador por ter programado também um outro encontro, com a sociedade civil, para debatermos as mesmas questões. Trata-se de um bom sinal de promoção institucional da participação da sociedade civil na discussão das questões estruturantes do país.

A Lunda-Norte ocupa um lugar especial na minha carreira profissional, devido aos muitos anos que dediquei a expor casos de violações de direitos humanos nas áreas de exploração diamantífera, e a miséria e humilhação das comunidades locais. Assisti e vivi várias experiências traumatizantes nesta região, e que muito reforçaram as minhas convicções na luta pelo respeito da vida e da dignidade da pessoa humana, sobretudo.

Hoje, estou aqui simplesmente como um concidadão, um irmão em diálogo fraterno e crítico com as autoridades locais, sobre a edificação de uma nova era. Buscamos o estabelecimento de uma visão partilhada entre todos os angolanos quanto ao bem comum que constitui a dignificação plena dos homens e das mulheres da nossa Angola. Como podemos construir um país melhor para todos nós? Este é o nosso principal desafio.

O encontro organizado pelo Governo Provincial da Lunda-Norte tem lugar hoje e amanhã, e integra um movimento progressivo que por todo o país pretende pôr cobro ao regime de corrupção e pobreza.

Para notas de discussão, escolhemos quatro temas principais: a contextualização socioeconómica das Lundas, o combate à corrupção, os pressupostos da boa governação e, finalmente, a desconcentração de poder com vista a uma administração local efectiva.

De certo modo, estes temas orientam a proposta de quatro vectores para a melhoria das condições de vida das populações nas Lundas.

Começo por lembrar uma passagem de Pepetela no seu livro “Lueji, o Nascimento de Um Império”, a qual se refere à Lunda, mas não só, e que nos remete directamente para o presente e para o significado do combate à corrupção: “As linhagens perdiam força, pois não eram os chefes a comandar os exércitos pelo direito do nascimento, mas sim pela competência de guerra. Era realmente uma heresia.”

A corrupção, como aquelas figuras das lendas antigas, tem uma irmã que se apoderou do seu ser e a tornou no monstro destruidor que hoje conhecemos e que levou à privatização do Estado. Essa irmã é a incompetência. Corrupção e incompetência tornaram-se sinónimos e lugares-comuns na administração do nosso país. Estes são os dois principais vectores que impedem, por um lado o bom funcionamento das instituições do Estado e, por outro, a satisfação das necessidades da população angolana.

Contextualização socioeconómica das Lundas

Em Março de 2012, o então presidente José Eduardo dos Santos afirmou na Lunda-Norte o seguinte, enumerando várias estradas da província: “O dinheiro que o governo arrecada de Catoca por ano não chega sequer para pagar as estradas que estamos a fazer agora.”

Como foi possível fazer tal afirmação, quando vimos tantos a ficarem bilionários com o dinheiro dos diamantes?

Todos nós ouvimos falar dos milhares de milhões dos negociantes Sylvain Goldberg, Arkadi Gaydamak e Lev Leviev, que acumularam fortunas desmesuradas à custa dos diamantes desta terra. Recentemente, vimos Isabel dos Santos e o marido, Sindika Dokolo, nas mais importantes festas das sofisticadas cidades europeias, luzindo os seus milhões em diamantes.

É totalmente falsa a ideia absurda segundo a qual os diamantes não chegam para sustentar a população das Lundas.

Defender esta ideia corresponde àquela mistura explosiva de corrupção e incompetência. A corrupção gera incompetência e a incompetência gera corrupção, criando-se um círculo vicioso de empobrecimento do país. É por isso que temos clamado, com tanta insistência, por um combate efectivo contra a corrupção. Não está apenas em causa colocar na cadeia alguns criminosos. Há muito mais em jogo neste momento. Estamos a procurar a mudança do paradigma no qual assentava o Estado. Se não for premiado o mérito, nunca teremos uma administração eficiente.

Centralidade do Dundo, Lunda-Norte.

Contudo, para premiarmos o mérito e escolhermos os melhores e mais capazes, temos de debelar a corrupção. É a corrupção que impede qualquer escolha que não seja baseada no compadrio, no nepotismo e na pertença a linhagens político-partidárias igualmente corruptas. Por exemplo, temos recebido muitas queixas, por parte de candidatos à prestação de serviços ao Estado e à admissão na função pública, respeitantes a concursos públicos viciados.

As Lundas são um espelho impressionante dos efeitos da corrupção e da falta de mérito nas escolhas administrativas. Aqui temos uma terra rica, produtora de alguns dos maiores e mais valiosos diamantes do mundo, e que mantém a sua população na extrema pobreza devido à rapacidade e voracidade dos dirigentes passados.

Em 2018, reportei que entre 2013 e 2017, só em dois projectos diamantíferos o Estado angolano e seus parceiros registaram o desaparecimento de mais de US $290 milhões, designadamente na Sociedade Mineira do Cuango e na Sociedade Mineira do Chitotolo (na Lunda-Norte).

Já em Junho desse mesmo ano, a Sociedade Mineira do Catoca, que opera no quinto maior kimberlito do mundo, revelava ter acumulado perdas no valor de US $464 milhões nos últimos seis anos. Essas perdas deviam-se a imposições de compra de diamantes muito abaixo do seu valor real, por parte de organismos do Estado.

Sabemos que, depois, esses diamantes comprados abaixo do custo eram vendidos a preços lucrativos, através de um elaborado esquema internacional de fuga ao fisco, que passava pelo Dubai e pela Europa, acabando por beneficiar a filha do então presidente da República, o seu marido e mais algumas figuras.

O que poderia ter sido feito, nas Lundas, com investimentos racionais de mais de 700 milhões de dólares perdidos somente nestes dois esquemas? Quais teriam sido os benefícios para as comunidades locais, usando só esse dinheiro?

Além do mais, a riqueza das Lundas não se limitava a beneficiar os dirigentes de topo ou os estrangeiros acima mencionados. Muitas outras figuras nacionais e estrangeiras menos conhecidas instalaram-se nas Lundas, dedicando-se a actividades de comercialização diamantífera e ao patrocínio de garimpo – os famosos “bosses” – e assim enriquecendo rapidamente.

Só o historial das populações é que é de violência, miséria e morte. Esse tempo tem de terminar e o combate à corrupção constitui sem dúvida o ponto de partida.

As administrações municipais devem representar mais as comunidades locais junto do poder central, como se defende no encontro.

Combate à corrupção

Podemos começar por falar da importância do discurso político de combate à corrupção. Neste contexto, acontecem, por exemplo, casos caricatos de políticos que foram constituídos arguidos, como Virgílio Tyova, ex-governador do Cunene e actual primeiro secretário do MPLA nessa província, e que lideram marchas a favor da luta contra o conjunto de crimes de que são suspeitos. Trata-se de uma prova do extraordinário efeito do discurso oficial de combate à corrupção somente no plano da actividade política: é uma narrativa directa e mobilizadora até de quem prevarica.

Fora da narrativa estritamente política, os efeitos práticos da luta contra a corrupção revelam a premência da execução de medidas práticas de moralização da administração pública e da justiça, assim como da implementação  de reformas económicas eficazes.

Ao nível da administração pública, é necessário engendrar medidas mais expeditas de busca e promoção do mérito, competência e ideias inovadoras. Estas devem ser a base para a melhoria da função pública, no mesmo plano que a racionalização, profissionalização e remuneração dignificante dos recursos humanos. Sem a promoção do mérito e da competência, pouco ou nada mudará em termos estruturais.

Quanto à justiça, recorremos ao princípio constitucional da separação de poderes para distinguir a liderança presidencial no combate à corrupção e o papel soberano da justiça.

Os instrumentos que o presidente João Lourenço, principal activista da causa, tem para promover o chamado combate à corrupção não são tão alargados como pensaríamos e residem nas competências do poder executivo, designadamente, os serviços de controlo interno da Administração do Estado. Trata-se da Inspecção-Geral da Administração do Estado, a Inspecção de Finanças e as inspecções gerais ou sectoriais. Além disso, o presidente da República comanda as polícias e pode dar instruções ao Ministério Público nos termos definidos na Constituição e na Lei, que são limitados, pois o Ministério Público goza de autonomia, ainda que não de independência.

O presidente não pode julgar e condenar. Essa tarefa pertence aos tribunais, um poder soberano e separado do presidente da República.

De que modo podem os órgãos de justiça, nas condições actuais, ser eficazes na realização cabal das suas tarefas de administração imparcial e justa, quer nos casos de corrupção quer em relação a todos os outros crimes? Há juízes a reclamar que têm de levar o seu próprio papel higiénico para os tribunais, comprar folhas de papel e pagar pelas diligências para expedirem as suas sentenças. Há dias, o Tribunal Provincial de Malanje encerrou as portas por causa da destruição das suas instalações e dos próprios processos pelas chuvas. Urge dotar o sector da justiça dos meios adequados para realizar devidamente as funções que lhe são acometidas.

A verdade é que a economia se encontra estagnada desde 2014. Por isso, os recursos são escassos, e é fundamental encetar uma política económica coerente, que garanta o desenvolvimento do país e não produza os efeitos recessivos que a presente produz.

Por tudo o que temos vindo a dizer, compreende-se que é necessário efectuar verdadeiramente a passagem para uma abordagem diferente, instituindo um novo paradigma, não apenas no plano da narrativa, mas igualmente no plano das políticas públicas: trata-se do princípio da transparência e da boa governação, constitucionalmente consagrado no art. 104.º, n.º 4 da Constituição da República de Angola.

Os pressupostos da boa governação

Recorrendo aos conceitos definidos pelo Banco Mundial e pela Nova Parceria para o Desenvolvimento em África (NEPAD), a boa governação é componente fundamental nos processos de desenvolvimento, dos quais destacamos os seguintes indicadores:

  • Participação dos cidadãos
  • Prestação de contas
  • Responsabilidade
  • Instituições efectivas e eficientes
  • Transparência
  • Respeito pela lei
  • Orientação para consensos

Um dos elementos fundamentais para a boa governação – ultrapassando a esfera da vontade política e da sapiência dos juristas, determinantes na orientação dos processos socioeconómicos e políticos no país – é o combate à mentalidade dominante na sociedade angolana de elite, cujas características fundamentais são a desvalorização da vida e dignidade humanas, o triunfo da mediocridade e a intriga.

Apenas por meio de um diálogo nacional estruturante sobre quem somos e o que queremos enquanto cidadãos do mesmo espaço comum será possível ultrapassarmos esta mentalidade, causadora da nossa autodestruição e impeditiva de avanços eficazes.

Desconcentração de poder, para uma administração local efectiva

A efectiva melhoria das condições de vida da população das Lundas, bem como da população angolana em geral, que conduzirá ao progresso social, político e económico do país, depende, como já referimos, do combate à corrupção, à incompetência e à mentalidade dominante.

No entanto, há uma outra dimensão fundamental: a reforma da administração do Estado. Só ela poderá garantir a implementação eficaz dos princípios constitucionais de desconcentração e descentralização administrativa.

A administração local do Estado deve ser compreendida, no actual quadro constitucional, como os órgãos e os serviços vitais para o desenvolvimento, sobretudo nesta fase, em que não estão ainda institucionalizadas as autarquias locais.

Com efeito, o sucesso das medidas de políticas públicas depende mais da eficiência e eficácia da administração local do Estado do que da competência da administração central (o Governo).

É a destreza dos serviços mais próximos das populações que vai determinar a melhoria (ou não) das condições de vida das populações e dos indivíduos. Para o governo central – devido à distância –, as populações são números e estatísticas; para a administração local (do Estado ou autárquica), os indivíduos são vizinhos cuja angústia é sentida de perto. É necessário, portanto, transferir as maiores tarefas da governação do centro para a chamada administração periférica (do Estado e/ou autárquica).

Segundo vários juristas consultados para a presente comunicação, esta ideia decorre de princípios constitucionais. Mais especificamente, do princípio da simplificação administrativa (aplicável a todas as formas de administração), o princípio da aproximação, o princípio da desconcentração administrativa, o princípio da descentralização administrativa. Todos eles estão enunciados no art. 199.º, n.º 1, da Constituição.

Finalmente, importa falar acerca do diálogo. Há um rigor ético, que se estende muito além do cumprimento formal das obrigações e que é necessário incutir nas mentalidades públicas e privadas. Qualquer renovação do paradigma do Estado terá de começar pelo diálogo, sobretudo nas Lundas.

Não é necessário mais dinheiro. Já vimos que os diamantes nas Lundas geram muito dinheiro. O imperativo que essas receitas sejam usadas com eficácia e eficiência, e para isso é óbvio que não poderá existir nem corrupção, nem incompetência.

Mas, para garantir a racionalidade e a optimização no uso dos recursos, é fundamental o permanente diálogo com as comunidades locais. São elas que mais sentem e sabem aquilo de que precisam, são elas que conhecem o segredo de cada grão de terra, são elas que vivem o quotidiano duro. Ontem, por exemplo, comprámos bananas a 100 kwanzas cada unidade, junto ao posto fronteiriço de Tchissanda, a sete quilómetros da capital da Lunda-Norte, o Chitato. Numa terra tão fértil e rica em recursos hídricos, a falta de produtos agrícolas revela falta de estratégia nacional e de diálogo abrangente. Esse é o degrau que é necessário subir: o degrau do diálogo com os habitantes locais.

Havendo diálogo, torna-se possível motivar os membros da comunidade a congregar, na diferença e de forma crítica, as suas melhores ideias no sentido de se trabalhar para uma visão, um entendimento ou uma solução comum quanto a um problema específico. Só assim será possível gerar a confiança mútua entre os cidadãos e os seus governantes, para se alcançar o bem comum, para se dar o passo certo no desenvolvimento humano e sustentável de Angola.

Recapitulando, a nossa mensagem fundamental é a do lançamento de mecanismos de diálogo entre as instituições estatais e as comunidades locais, para, em conjunto, se começarem a resolver os problemas do povo. Esse diálogo deve priorizar as seguintes componentes: mudança de mentalidades; combate à corrupção; moralização da administração pública e da justiça; prestação de contas e gestão transparente; e, finalmente, colocação da administração local do Estado ao serviço das necessidades concretas da população. A administração local do Estado deve ver-se cada vez menos como representante do Estado junto das populações, e cada vez mais como representante das populações junto do Estado, colocando-se ao serviço do bem-estar e do desenvolvimento das localidades. Estes são os pequenos grandes passos no sentido de um futuro melhor.

*Comunicação apresentada na Vila do Dundo, a 26 de Fevereiro, na palestra “O Combate à Corrupção, Impunidade, Nepotismo, Bajulação e a sua Contribuição para o Desenvolvimento da Lunda-Norte”, organizada pelo governo provincial da Lunda-Norte, para os seus membros.

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