Os Hospitais de Papel e a Tristeza de Higino Carneiro (Parte 1)

Em Angola, a maioria dos cidadãos continua a não ter consciência dos efeitos mortíferos da má governação.

Uma empresa recebeu fundos destinados à construção de quatros hospitais, em quatro municípios diferentes. Passados mais de seis anos, os hospitais não saíram do papel, apesar de terem sido feitos pagamentos substanciais. Num dos hospitais onde chegaram a levantar-se paredes, a obra foi logo abandonada.

Se o dinheiro não tivesse sido tão mal gasto, mesmo tendo em conta o péssimo estado do serviço nacional de saúde, quantos milhares de cidadãos teriam podido receber assistência médica, quantas vidas poderiam ter sido salvas? Não teria sido mais eficaz se se tivesse programado e construído efectivamente apenas um hospital, em vez de se planear quatro, sem conclusão de nenhum?

O caso reporta-se à província do Kuando-Kubango, onde foram efectuados pagamentos de várias dezenas de milhares de milhões de kwanzas por obras nunca realizadas. E um dos períodos de maior despesismo ocorreu durante o governo do general Higino Carneiro (28 de Setembro de 2012 a 11 de Janeiro de 2016). Uma das empresas recebeu, sozinha, sem concurso público mas antes por “convite”, o equivalente a mais de 60 milhões de dólares por obras que, na sua maioria, nunca foram realizadas.

NNN

Uma das empresas que mais beneficiou deste esquema foi a NNN – Engenharia e Construção, Lda., pertencente a Nuno Miguel de Sousa Lá Vieter, genro do general Higino Carneiro, então governador da província.

Durante o mandato de Higino Carneiro, a NNN recebeu pagamentos do governo provincial no valor total de sete mil milhões e 262,6 milhões de kwanzas – equivalentes a 60,4 milhões de dólares (segundo a taxa média de câmbio anual).

Constituída a 14 de Maio de 2008, a NNN teve como sócios iniciais, para além de Lá Vieter, os cidadãos portugueses Nelson Nunes Rocharte Loução Vítor e Nelson José Pereira Gonçalves.

As nossas tentativas de ouvir a versão de Nuno Lá Vieter foram infrutíferas, porque as mensagens enviadas por email foram devolvidas. Notamos que o mesmo se encontra no exterior do país há mais de um ano. Todavia, as páginas do Maka Angola estão naturalmente abertas ao Direito de Resposta.

Ao Maka Angola, o general Higino Carneiro esclarece, por escrito, que “a empresa NNN – Engenharia está no Cuando-Cubango muito antes de eu ter assumido a função de governador daquela Província. Ela não foi convidada por mim para prestar serviços naquela Província”.

E continua: “Também é importante que saiba que o Eng.º Nuno Lá Vieter só é meu genro desde o ano de 2017 e […], nessa altura, quando celebrou o acto eu já não estava em Menongue [capital da província].”

Mais adiante, nas suas respostas, o actual deputado foi mais específico sobre a relação de negócios com Nuno Lá Vieter: “Não atribuí obras ao meu actual genro no Cuando-Cubango nessa qualidade. Enquanto governador, autorizei a contratação de obras à Empresa NNN pela sua competência e qualidade técnica.”

Nos últimos dias do seu mandato, o governo provincial do Kuando-Kubango emitiu várias ordens de saque a favor da NNN, no valor de cerca de 1,3 mil milhões de kwanzas, que foram todas pagas a 3 de Fevereiro de 2016.

A nomeação de Higino Carneiro para governador de Luanda, a 11 de Janeiro de 2016, bem serviu a NNN, que, nesse mesmo ano fiscal, recebeu pagamentos no valor total de 294,6 milhões de kwanzas por obras na capital. No ano seguinte, esse valor ascendeu a 443,3 milhões de kwanzas por serviços prestados ao governo provincial de Luanda.

Neste primeiro trabalho, resultante de nova série de investigações à governação no Kuando-Kubango, revelamos apenas uma pequena amostra de pagamentos feitos, confirmados e não honrados, respeitantes a quatro hospitais planeados para quatro municípios: Mavinga, Menongue, Dirico e Rivungo.

Ao Maka Angola, o general Higino Carneiro explica que “o governador provincial não atribui obras de modo directo. É por esta razão que tem na sua equipa responsáveis técnicos para avaliar os projectos, negociar os termos das empreitadas e propor ou não a celebração de contratos”. Segundo o general, “esses temas, pela sua especificidade, são tratados pelo vice-governador para a Área Técnica e Infra-estruturas”.

O general e actual deputado do MPLA afirma ainda: “Eu não homologuei nenhum contrato de construção de hospitais a favor da Empresa NNN – Engenharia.”

“Os contratos das obras dos hospitais sanatório, Mavinga e o Centro de Saúde de Dirico decorriam de exercícios anteriores à minha governação”, prossegue o general. O seu antecessor foi o general Eusébio de Brito Teixeira.

De forma detalhada, Higino Carneiro explica que decidiu apenas ampliar a construção do hospital sanatório, para “atender outros serviços sociais”, após a visita do então ministro da Saúde.

“O Ministério da Saúde elaborou o projecto de ampliação e seria feito o contrato de uma adenda, que na verdade não se chegou a assinar”, justifica. Com efeito, o general Higino Carneiro refere ter dado apenas continuidade a projectos anteriores ao seu mandato. Mesmo esses projectos “só não avançaram mais por exiguidade de recursos e também pela depreciação galopante da moeda, que impunha que se fizessem ajustamentos cambiais, porquanto os contratos tinham sempre a indexação ao dólar americano. Só no ano passado é que o BNA alterou esse princípio”, escreve o general.

Sobre as obras do hospital de Mavinga e do Centro de Saúde do Dirico, o general lembra que “as estruturas metálicas de suporte principal dessas unidades sanitárias estavam já em Menongue”.

“Todos estes projectos foram negociados antes de mim, e à minha governação coube a missão de dar continuidade tendo em conta que os programas de governo eram plurianuais”, enfatiza.

“Em Mavinga e no Dirico as obras iniciaram no meu mandato mas decorriam já de compromissos passados, como por exemplo as pontes da cidade de Menongue, a Universidade Cuito Cuanavale, entre outras obras”, acrescenta.

Segundo o actual deputado Higino Carneiro, todos os empreiteiros reclamavam a falta de pagamentos. “É importante que lhe diga que o facto de ser emitida uma Ordem de Saque não significa que automaticamente o pagamento tenha sido feito. Pesquise e veja quantas centenas de ordens de saque estão emitidas mas na verdade não geraram pagamento.”

Na sua explanação, Higino Carneiro descreve a forma como o Ministério das Finanças tem homologado as facturas para gerar pagamentos. “Mas esse pagamento só ocorre se o BPC [Banco de Poupança e Crédito] tiver recursos do tesouro para pagar. Daí a reclamação de dívidas. Quando assumi as funções de governador foi-me solicitado apresentar as dívidas que existiam de anos anteriores cujo documento fora feito pelo meu antecessor”, afirma o ex-governador.

“Tanto quanto sei, salvo outra informação, muitas delas estão por pagar. E com a depreciação que vai havendo, não terão outra alternativa senão renegociar ou fazer novos contratos ajustados à realidade”, continua.

Os dados ora apresentados pelo Maka Angola referem-se apenas a pagamentos efectuados, conforme as informações em nossa posse, e que constituem apenas uma parte de um todo.

Município de Mavinga e o hospital de papel

Para o Hospital Regional de Mavinga, a NNN beneficiou de uma verba de 500 milhões de kwanzas. Sob anonimato, um alto funcionário do governo provincial do Kuando-Kubango confirma que a obra nunca passou dos cabocos. “Só o governador [Higino Carneiro] e os homens do GEPE [Gabinete de Estudos, Planeamento e Estatística] sabiam sobre os pagamentos destas obras”, refere a nossa fonte.

O Hospital Regional de Mavinga deveria atender quatro municípios, incluindo Dirico, Nancova e Rivungo.

Durante o governo de Higino Carneiro, a NNN recebeu cinco pagamentos, conforme a tabela abaixo. Entretanto, o general teve o cuidado de explicar que deixou a província em finais de 2015 (foi exonerado a 16 de Janeiro de 2016). “Pelo tempo não me recordo de tudo.” Todavia, manifestou o seu empenho em responder de acordo com a sua memória.

Data Valor de pagamento
20.02.2014 45,000,000
04.08.2014 30,000,000
15.09.2014 25,000,000
09.10.2014 40,000,000
13.01.2015 13,943,584
TOTAL 153,943,584

No que diz respeito ao hospital, há mais elementos interessantes. A 3 de Fevereiro de 2016, o governo provincial do Kuando-Kubango, já sob comando de Pedro Mutindi, efectuou três pagamentos a três empresas diferentes, pela construção fictícia do hospital. Trata-se da empresa Jobagel e Filhos, Lda., pertencente ao general João Baptista Chindandi “Black Power”, antigo governador do Kuando-Kubango, que recebeu 12,5 milhões de kwanzas. Seguem-se a Adcali – Construção Civil e Obras Públicas, pertencente a Adolfo Carlos Lima, e a Bigitex – Comércio Internacional e Representações, Lda., propriedade de Sebastião Maria Teixeira. Ambas foram beneficiárias de pagamentos no valor de nove milhões de kwanzas cada uma.

Também a rubrica de desenvolvimento habitacional não passou das intenções. A 2 de Fevereiro e a 6 de Março de 2014, o governo provincial, então liderado pelo general Higino Carneiro, pagou um total de 165 milhões de kwanzas à NNN, destinados à “primeira fase” de construção de 15 casas sociais, na sede de Mavinga, parte de um total de 200 habitações.

A construção de uma pista com aeródromo, no município de Mavinga, é uma das obras não realizadas, mas pela qual a NNN recebeu pagamentos através da sua conta domiciliada no Banco de Poupança e Crédito (BPC). De 12 de Fevereiro a 27 de Julho de 2015, o governo do general efectuou seis pagamentos no valor total de 188,3 milhões de kwanzas à empresa de Nuno Lá Vieter.

De acordo com a mesma fonte, a NNN “nunca construiu a sede da administração municipal, bem como a residência do administrador. A 2 de Fevereiro de 2016, conforme documentação em posse do Maka Angola, o governo provincial do Kuando-Kubango, já sob chefia de Pedro Mutindi, pagou um total de 71,1 milhões de kwanzas à NNN, destinados ao “Estudo e Construção da Administração Municipal de Mavinga”. “Nem do estudo a administração local teve conhecimento. Houve apenas um acto público de anúncio de construção da administração pelo então governador Higino Carneiro, na presença do então ministro do Planeamento, Job Graça”, revela um alto funcionário do governo provincial que participou do acto.

No mesmo dia, a 2 de Fevereiro de 2016, a NNN recebeu mais um pagamento de 9,4 milhões de kwanzas, para a construção de uma escola de artes e ofícios em Mavinga. De acordo com as investigações deste portal, a NNN não construiu essa escola.

Apesar de a referida escola nunca ter passado do papel (e do pagamento), a 13 de Dezembro de 2018, o governo provincial pagou 100 mil kwanzas à empresa Carimi Service, pela fiscalização de uma obra inexistente.

A segunda parte desta matéria sairá já amanhã no Maka Angola.

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