O Insustentável Labirinto da Justiça

Mil e uma vezes uma boa ideia transforma-se num inferno dantesco devido aos detalhes.

O combate à corrupção, a ideia fundamental e muito aplaudida da governação de João Lourenço, corre o risco de se transformar numa farsa, não por responsabilidade do presidente da República, mas devido ao sistema de justiça disfuncional e impreparado para a tarefa que ele herdou.

Falemos do caso Augusto Tomás, não para discutir a sua inocência ou culpa, já que isso deveria ser tarefa dos tribunais, mas para ver como a justiça tem vindo a transformar-se numa pantominice assustadora.

Foram-nos remetidas algumas Declarações de Voto de Vencido proferidas por juízes do Tribunal Supremo na decisão de recurso do caso de Augusto Tomás.

A existência de Votos de Vencido é normal, faz parte do processo aberto e justo que se pretende praticado em qualquer país. O problema não está na redacção de Votos de Vencido. O problema, e grave, está no seu conteúdo. Basta ler as primeiras linhas.

O juiz conselheiro Norberto Capeça escreve: “Não me foram garantidas as condições legais para que, de forma conscienciosa, pudesse formar a minha convicção.” E descreve exaustivamente a velocidade com que o obrigaram a decidir. No fundo, o que Capeça está a afirmar é que era pretendido que ele assinasse “de cruz”, sem ler nem analisar o processo.

A mesma dificuldade e falta de tempo para emitir o voto em consciência foi reportada pela juíza conselheira Teresa Buta.

Por outro lado, na Declaração de Voto da juíza Anabela Vidinhas, fica patente uma violação flagrante das regras de tomada de decisão judicial.

Além destes reparos, todos os juízes se referem à confusão e falta de afinação da matéria de facto e da imputação individual dos crimes em relação a cada uma das pessoas.

A partir do exposto, parece claro que o processo deliberativo dos juízes não ocorreu efectivamente, tendo estes sido colocados perante um facto consumado, não lhes sendo concedido tempo de reflexão e discussão.

Não é necessário entrarmos em demasiados detalhes legalísticos – basta socorrermo-nos dos princípios básicos constitucionais que presidem à decisão judicial para percebermos que o acórdão que delibera o recurso de Augusto Tomás não existe, porque não ocorreu o processo legal de discussão e debate prévio e necessário para se chegar a uma decisão. Trata-se daquilo a que na doutrina norte-americana se chama “due process” (o processo devido).

Ora, não seguir o “processo devido” para tomar uma decisão sobre a libertação ou detenção de uma pessoa constitui uma ofensa fundamental aos direitos individuais consagrados na Constituição, que, como se sabe, têm aplicação directa.

Nessa medida, tendo em conta que vários juízes afirmam que a decisão lhes foi imposta, que não tiveram tempo para estudar e analisar o processo, é óbvio que o resultado não é um acto justo e formalmente válido, mas sim uma imposição administrativa sem qualquer valor de direito. Consequentemente, poder-se-á dizer que o acórdão sobre Augusto Tomás nem sequer existe enquanto aresto jurídico.

Evidentemente, esta trapalhada não torna Augusto Tomás inocente, tal como não o torna culpado. O que significa é que a justiça angolana não está preparada para lidar com casos desta natureza. Durante décadas, o funcionamento judicial no país pautou-se por um comportamento acomodatício, deferente para com o poder político, consagrando-se voluntariamente enquanto instrumento de um governo corrupto e autoritário.

Historicamente, sabe-se que as magistraturas representam por norma o conservadorismo e o atavismo, constituindo obstáculos à mudança. Foi por isso que Napoleão proibiu os juízes de interferirem nas actividades do Executivo.

No mandato de João Lourenço, a justiça tem andado em sobressalto permanente. Houve o caso do mandato desgraçado de Rui Ferreira, a contestação do concurso para a Relação, e agora a incapacidade para transmitir à sociedade confiança na resolução do mais importante caso de corrupção que já chegou aos tribunais.

Esta impreparação exige a intervenção do presidente da República enquanto mais alto magistrado da nação e garante do bom funcionamento das instituições. O combate à corrupção é demasiado sério para ser entregue a um sistema que não funciona e não tem capacidade de resposta.

A lição que há a retirar é a necessidade de rever todo o processo e a estrutura judicial que existe para o combate à corrupção. Assim, está mais que visto que não será possível levar a cabo um combate eficaz. Tudo se perderá nas trapalhices das becas (o traje dos juízes) esvoaçantes.

Esta necessidade de revisão e renovação do processo judicial para o combate à corrupção leva-nos ao segundo ponto levantado pelos juízes conselheiros nos seus Votos de Vencido: a falta de consistência da matéria de facto e da ligação dos factos aos crimes e às pessoas. Estas falhas derivarão da acusação inicial e do papel da Procuradoria-Geral da República (PGR) e do Ministério Público (MP). Também aqui se têm feito sentir muitas dificuldades em acompanhar com efectividade adequada os desideratos do combate à corrupção, preferindo-se o recurso a expedientes amadores que depois se viram contra as instituições.

Vê-se claramente que a forma como está redigida a acusação levanta muitas dúvidas aos juízes, que se queixam de que os princípios básicos do direito penal, como a individualização da culpa e dos comportamentos, bem como do nexo entre facto e crime, não estão bem esclarecidos. Ora, isto é o elementar.

Tem-se tornado visível, ao longo destes dois anos de combate à corrupção, que também ao nível do Ministério Público não existe a dinâmica e o rigor técnico fundamentais para combater a corrupção.

Logo, ou se muda o PGR ou se retira o PGR do combate à corrupção, e se criam estruturas específicas. O que não pode acontecer é aparecer uma condenação de Augusto Tomás em que ninguém acredita, transformando-se este numa espécie de vacina judicial. Depois da “barraca” de Tomás, ninguém se vai atrever a mais condenações e processos, para depois ser achincalhado. Mais uma vez, o tempo é do presidente da República: não para interferir no curso da justiça, mas para intervir na política da justiça, dotando-a das personalidades e dos mecanismos necessários para que o combate à corrupção seja eficaz, rápido, justo e credível para o país e o mundo.

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