O Espaço de Liberdade entre a Corrupção e a Justiça*

No mês passado, ao condecorar-me com a Medalha de Mérito Civil, o presidente João Lourenço destacou a importância e a participação proactiva da sociedade civil na luta contra a corrupção.

Mas, antes, o presidente sussurrou-me que eu estaria mais exposto devido à honra que ele me concedia. Acontece que a minha exposição é uma dádiva. Já o presidente, tem por um lado a ingrata missão de combater a corrupção e a impunidade, sobretudo no seio dos seus próprios camaradas, os detentores do poder; e, por outro, tem de garantir o pão a uma sociedade tutelada a pensar com o estômago, a sobreviver por meio de esquemas e conformada com a desinformação. Quem se lembra do espaço de liberdade à nossa vista para, de forma inclusiva, contribuirmos para um país melhor para todos os angolanos?

A minha presença neste acto, para além do gentil convite do senhor ministro Francisco Queiroz, responde ao desafio lançado pelo presidente para que se estabeleça um diálogo mais amplo e uma parceria entre o governo e a sociedade civil na busca de soluções para os problemas que o país enfrenta.

Sem sombra de dúvidas, a corrupção é, empiricamente, o maior problema da nossa sociedade. Temos dito que a corrupção mata. Mata, porque nos priva de recursos essenciais para o saneamento básico, elemento fundamental para a prevenção de doenças como a malária e outras que têm ceifado milhares de vidas anualmente. Mas até os mortos pagam por nós. Na passada sexta-feira, por exemplo, ouvi o depoimento do concidadão Vicente Amigo Ndeke, que, a 3 de Dezembro passado, teve de entregar 175 litros de combustível e mais 25 mil kwanzas ao Hospital Municipal do Cuango. O gasóleo e o dinheiro serviram de pré-pagamento para que o hospital guardasse o cadáver da sua sobrinha Sandra Muahona, falecida no mesmo dia, vítima de febre amarela. O péssimo estado da estrada entre a cidade do Dundo e o Cuango, na mesma província da Lunda-Norte, obrigava a que a família guardasse o cadáver durante dois dias, enquanto esperava pela chegada da mãe da vítima. O extraordinário foi ouvir um funcionário do hospital referir que, durante o dia, são os cadáveres que asseguram o funcionamento do hospital, por via do combustível pago pelos seus familiares para manter em funcionamento o gerador de energia eléctrica. O Cuango é um dos municípios mais ricos de Angola, em termos de recursos naturais – diamantes –, mas na realidade é dos mais desgraçados e constitui um exemplo trágico de corrupção e má gestão.

A corrupção mata, porque nos priva de investimentos sérios e estruturantes nos educadores e no sector da educação, para que tenhamos cada vez mais médicos, professores, engenheiros, governantes, membros da sociedade civil e da oposição mais qualificados, assim como mão de obra qualificada. Sem um nível de educação e de competências capazes de gerar a independência na gestão do nosso país, a nossa soberania mantém-se refém dos interesses alheios, dos consultores, especialistas e sócios estrangeiros por nós convidados. Por isso, o país gasta mais, anualmente, com os salários dos expatriados do que com o orçamento para a educação.

Consequentemente, a corrupção não é apenas um crime que urge combater: representa, sobretudo, um esboroamento da sociedade; no fundo, a inexistência de uma sociedade justa.

Já Aristóteles enfatizava que a justiça é o principal fundamento da ordem na polis, na sociedade, a virtude que permite que todos os cidadãos vivam em harmonia. E quando não há justiça temos uma sociedade corrupta, decomposta, em desordem.

Assim, a procura da justiça é a principal tarefa daqueles que querem pôr fim à corrupção. Em termos ônticos, justiça e corrupção são o oposto.

O caso de Miguel Sombo, na Lunda-Norte, que tenho vindo a acompanhar e reportar é um exemplo típico das situações injustas que uma sociedade corrupta produz. O jovem Miguel Sombo foi condenado a mais de quatro anos de cadeia por supostamente ter roubado uma motorizada. Na verdade, Sombo não roubou nada. O que aconteceu foi uma altercação, depois de Sombo ter viajado como passageiro num mototáxi, na vila de Cafunfo, município do Cuango, província da Lunda-Norte, e ter faltado ao pagamento de 100 kwanzas (30 cêntimos de dólar, ao câmbio oficial). A altercação acabou com uma condenação por roubo, da forma mais inaceitável possível. Segundo Miguel Sombo, o mototaxista deixou-o muito antes do destino, sob pretexto de dar boleia a um seu amigo, e mesmo assim exigiu o pagamento integral da viagem, no valor de 200 kwanzas, a que Sombo se recusou, por considerar que o condutor não tinha cumprido o combinado. O mototaxista e o tal amigo começaram a espancar Miguel Sombo, tendo depois gritado “gatuno!”, para que uma turba se juntasse ao espancamento, sem saber o que tinha realmente acontecido.

E aí começou a tragédia de Sombo. A Polícia Nacional, o SIC, a PGR e o Tribunal alinharam com a ignorância popular, mas neste caso por má-fé e corrupção, não por desconhecimento.

O investigador do SIC Fausto Luhame extorquiu dinheiro à família para a libertação de Miguel Sombo, a qual nunca ocorreu, tendo por isso enganado deliberadamente os pais do ora condenado.

O procurador e o juiz não cumpriram as diligências mínimas exigidas num Estado de Legalidade. Nem invoco o conceito de Estado de Direito, mais complexo e de conteúdo mais forte: basta dizer que as normas legais básicas que presidem ao inquérito criminal e ao julgamento não foram seguidas. No fim, uma disputa por 100 kwanzas terminou com a condenação da parte mais fraca a uma pena elevada de prisão.

Isto é a corrupção duma sociedade. Uma sociedade que deixa a injustiça prevalecer é uma sociedade corrupta, desordenada, caótica. Nesse sentido, há uma metodologia que deve ser seguida no combate à corrupção, e que começa precisamente na justiça.

O primeiro passo para a erradicação da corrupção é a existência de uma justiça em pleno funcionamento, igual para todos, célere e equilibrada. Retomando Aristóteles: “O homem justo é aquele que se conforma à lei e respeita a igualdade; injusto é aquele que contraria a lei e a igualdade.”

Deste modo, o funcionamento da justiça deve começar por assegurar que todos cumprem a lei e que ninguém está acima da lei.

Os primeiros que devem cumprir a lei e segui-la são os seus aplicadores: juízes, procuradores, polícias. A sua função exige-lhes não o atropelo permanente e constante da lei, mas sim o urgente respeito da lei. É este o passo essencial, mas simples, de qualquer reforma da justiça: colocar os homens da lei a respeitar a lei. Parece óbvio, mas como o exemplo que acima dei demonstra bem, e todos nós teremos histórias semelhantes para contar, no passado, a maioria dos homens da lei usaram a sua posição para cometer os maiores abusos, proteger os poderosos e espezinhar os fracos.

Assegurando que todos respeitam a lei, a justiça deve também ser igual para todos. Temos assistido nos últimos tempos a alguns processos contra os denominados “marimbondos”. A propósito desses casos, temos visto, nos últimos meses, advogados e juristas do mais alto calibre “rasgar as vestes” relativamente aos supostos abusos que se verificarão nos processos e julgamentos dos “marimbondos” do regime eduardista. Lembram-nos aquele episódio bíblico contado em 2 Samuel 13:30-31: “Chegou a seguinte notícia ao rei: Absalão matou todos os teus filhos; nenhum deles escapou. O rei levantou-se, rasgou as suas vestes, prostrou-se com o rosto em terra, e todos os conselheiros que estavam com ele também rasgaram as vestes.” Pois rasguemos também nós as vestes e tomemos medidas, mas relativamente aos mais pobres, aos mais frágeis, aos mais desprotegidos da sociedade, a quem nem sequer permitem os advogados exercer a sua profissão. Desses ninguém cuida, e é obrigação da sociedade tratar dos seus mais fracos – aliás, tratar de todos.

Injustiça significa corrupção, combate à corrupção significa reforma da justiça. E esta exige o respeito de todos pela lei e o tratamento igual de cada um dos cidadãos. Assente neste princípio, a reforma da justiça deve ir mais longe e entrar nos aspectos funcionais. Sobre o funcionamento da justiça, o ponto primordial são os juízes que temos.

A sociedade deve fazer uma profunda introspecção sobre o presente estado da magistratura judicial. Naturalmente, haverá muitas e boas excepções em relação à generalização que vou fazer de seguida, e essas saúdo-as. Contudo, o facto geral é que a presente magistratura judicial é a mesma que durante décadas serviu como instrumento da corrupção montada pelo anterior presidente da República. Ou não viu ou participou fortemente na mesma corrupção, deixando a injustiça perdurar, prevalecer. Não é crível que todos tenham tido uma repentina conversão damascena. O que me preocupa é que estejam os mesmos a seguir os mesmos métodos e formas de pensamento, a aplicar a nova política gizada pelo presidente da República João Lourenço. Será possível fazer circular um jorro de água nova e forte em canos velhos e carcomidos? Creio que os canos rebentarão todos… Por isso é que tem havido tantas falhas no sistema judicial, quando se trata dos processos relativos ao combate à corrupção.

A magistratura judicial tem de ser revista e reformulada. Talvez mesmo, dentro dos condicionalismos constitucionais, tenha de ser criado um corpo especial de magistrados vocacionados para o combate à corrupção.

Mantendo-nos nas citações bíblicas, permitam-me agora que invoque o Novo Testamento: “N[ão] se põe vinho novo em odres velhos; de outro modo arrebentam os odres, e derrama-se o vinho, e estragam-se os odres. Mas vinho novo é posto em odres novos, e ambos se conservam.” (Mateus 9:14-17) Em relação à magistratura judicial, algo de semelhante deve acontecer para se alcançar o sucesso no combate à corrupção.

Sem pormos fim à corrupção, nunca teremos uma Angola independente, soberana, livre e próspera.

* Comunicação apresentada hoje, nas jornadas do Dia Internacional contra a Corrupção, sob o lema “Combate à Corrupção, Nossa Responsabilidade”, organizadas pelo Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos.

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