O Caso dos $500 Milhões: Palavra de José Eduardo dos Santos Não É Lei

Começou no passado dia 9 de Dezembro de 2019 o julgamento de José Filomeno dos Santos, de Valter Filipe e de vários outros acusados no caso que ficou conhecido como a “transferência dos 500 milhões de dólares”. José Filomeno dos Santos é filho do antigo presidente da República José Eduardo dos Santos (JES), e Valter Flipe é o antigo governador do Banco Nacional de Angola (BNA).

Os contornos do processo são bem conhecidos. Na véspera do final do mandato de JES, em 2017, foi ordenada uma transferência de fundos públicos, totalizando 500 milhões de dólares, por via do BNA, com destino a uma conta privada de um banco em Londres. Esta transferência justificava-se como fazendo parte de um negócio de financiamento da República de Angola no valor de 30 mil milhões de dólares. A questão é que esse financiamento não existia e estava sustentado em documentação falsa.

Um facto que assumiu posição de destaque recentemente foi a disponibilidade de JES para responder por escrito às perguntas dos advogados de defesa, designadamente do advogado de Valter Filipe. A ideia que está a transparecer para a opinião pública é que, se JES assumir que foi ele quem deu a ordem para a operação ser montada e a transferência efectuada, então os arguidos limitaram-se a cumprir ordens presidenciais e serão absolvidos.

No entanto, não é assim. Mesmo especulando que JES, a partir do seu retiro em Barcelona, afirme que foi ele quem deu instruções para se proceder à estruturação do projecto e se realizar a remessa dos fundos para Londres, tal não iliba, à partida, nenhum dos participantes na manobra.

Se a operação é ilegal na sua materialidade, não é por JES afirmar que a mandou fazer que ela passa a ser legal. O presidente da República não tem poder para transformar o ilegal em legal, como não transforma um sapo numa princesa. O que é ilegal continua a ser ilegal. O facto de Valter Filipe ter apenas cumprido ordens do presidente da República não o absolve automaticamente. Pode ser absolvido, mas por outros motivos que veremos mais à frente.

Desde, pelo menos, o julgamento do Tribunal de Nuremberga em 1945, que envolveu os principais dirigentes nazis após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), que a argumentação defensiva baseada no seguimento ou cumprimento de ordens não iliba ninguém de responsabilidade criminal. Nessa época, foi aplicada a denominada Fórmula Radbruch, inspirada justamente em Gustav Radbruch, famoso professor e filósofo alemão do Direito. Segundo esta formulação, “um juiz que encontrar um conflito entre uma lei e o que ele considera justo deve decidir não aplicar a lei se – e somente se – o conceito jurídico por trás da lei em questão parecer insuportavelmente injusto ou deliberadamente violador da igualdade humana perante a lei”. Ora, esta formulação aplica-se a um juiz e a qualquer funcionário público. Ambos têm o dever de não aplicar leis profundamente injustas e, por maioria de razão, de não cumprir ordens ilegais. Não se cumprem ordens ilegais. Em regra, o dever de obediência cessa quando conduz à prática de um crime.

Esta doutrina foi reafirmada, no final do século XX, pelo Supremo Tribunal Federal da Alemanha e confirmada pelo Tribunal Constitucional alemão no Processo Mauerschützen, referente ao caso dos atiradores do Muro de Berlim.

A história conta-se rapidamente. Em 1961, a então República Democrática Alemã (RDA), estado ligado à União Soviética, ergueu um muro no meio de Berlim para impedir os seus cidadãos de fugirem para a zona ocidental da cidade, que pertencia à República Federal da Alemanha (RFA). Os guardas do muro da RDA receberam ordens do governo para atirar a matar a todos os que tentassem ultrapassar o muro, e assim aconteceu. Em muitos casos, abateram os fugitivos, cidadãos do seu próprio país que queriam passar para o Ocidente.

Depois da unificação alemã e da queda do Muro de Berlim, em 1989, esses soldados foram levados a julgamento criminal. Defenderam-se, afirmando que estavam a cumprir as normas da RDA e as ordens superiores dos dirigentes comunistas. Entre 1992 e 1996, os vários tribunais da Alemanha reunificada condenaram os guardas em questão, não aceitando a sua estratégia de defesa e considerando que os seus actos foram antijurídicos.

Com as necessárias adaptações e diferenças, no caso dos 500 milhões estamos perante uma situação idêntica. Temos actos potencialmente criminosos, que violam o Direito. Ora, não será pelo facto de o presidente da República ser o seu ordenante que estes actos se tornam legais. Na verdade, o facto de JES mandar desviar dinheiro do Tesouro Nacional é algo que seria sempre ilícito, independentemente das circunstâncias. O presidente de um país não pode “roubar” o Estado. Portanto, a matéria que consubstancia o desvio dos 500 milhões de dólares é sempre criminosa em si mesma.

Dito isto, também não é certo que Valter Filipe e os restantes funcionários do BNA sejam necessariamente condenados. Podem não ter culpa e ser absolvidos relativamente aos actos concretos que praticaram. A moderna doutrina penalista adoptou a figura da “obediência indevida desculpante”, que nos diz que age sem culpa o funcionário que cumpre uma ordem sem conhecer que ela conduz à prática de um crime, não sendo isso evidente no quadro das circunstâncias por ele representadas.

Consequentemente, é no caso concreto que temos de perceber se, face à ordem de JES, Valter Filipe e os restantes pensaram que estavam a cumprir uma determinação que não era crime. Nesse caso, terão de ser absolvidos.

Quer isto dizer que o relevante não é JES ter dado a ordem de transferência. Isso não descriminaliza a ilicitude do acto. O importante é apurar se o cenário que foi apresentado a Valter Filipe não lhe permitiu entender que estava a cometer um crime, mas sim a promover o interesse do Estado em obter um empréstimo externo avultado. Por sua vez, se JES assumir que deu efectivamente as ordens para montar toda a operação, colocar-se-á forçosamente debaixo da alçada da justiça. Mas a questão do julgamento de JES pelos variados actos perniciosos ao bem comum que cometeu ao longo de décadas é todo um outro tema.

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