Escola do Kilamba Apreendida pelo Estado: Um Excesso Injustificado

No dia 1 de Setembro de 2016, o Governo Provincial de Luanda, através de André Soma, director provincial de Educação, e a FDC, Investimentos (SU) Lda., representada por Francisco José da Cruz, seu sócio único, assinaram um Memorando de Entendimento que tinha por objecto a transferência da gestão e a regulação da instalação e do funcionamento da Escola de Ensino Primário e 1.º Ciclo, localizada em Luanda, Kilamba, KK 5000. Nesse Memorando, explicitava-se que o estabelecimento de ensino era propriedade do Governo Provincial de Luanda, assim apenas se transferindo para a entidade privada a responsabilidade do seu funcionamento (cláusula primeira do Memorando).

Actualmente, Francisco José da Cruz é o embaixador de Angola na República Democrática Federal da Etiópia e representante permanente junto da União Africana e Comunidade Económica para África. Anteriormente, foi responsável pela Direcção América do Ministério das Relações Exteriores. À época em que o contrato com a FDC foi assinado, Francisco José da Cruz era somente, portanto, um alto funcionário do Ministério das Relações Exteriores.

O Memorando foi homologado em Setembro de 2016, pelo governador da Província de Luanda, general Higino Carneiro, e a entrega das chaves à FDC, para então iniciar a gestão do estabelecimento, ocorreu a 19 de Setembro desse mesmo ano.

Escola de Ensino Primário e 1.º Ciclo em Luanda, Kilamba

Os termos do Memorando eram simples. Talvez por isso tenham levantado a suspeita da Procuradoria-Geral da República. Por um lado, o Governo Provincial dotava a escola de todas as infra-estruturas e de todo o material, ficando pronta a funcionar (cláusula terceira do documento). Por outro lado, a FDC assegurava a gestão do estabelecimento, pagando aos docentes e recebendo dos alunos, garantida que estava a autonomia científica, pedagógica e financeira (cláusulas segunda e quarta).

A informação em falta neste Memorando dizia respeito à compensação do Governo Provincial por entregar uma escola pronta a funcionar. Nos termos habituais, deveria estar previsto que a FDC pagasse uma renda, entregasse uma participação nos lucros, ou de alguma forma compensasse financeira o Estado pela concessão da gestão de ensino. Embora se desconheçam os detalhes, terá sido a ausência de tal informação que conduziu à investigação criminal que adiante se descreve. Admitimos que se possa argumentar que a alternativa a este Memorando era a existência de uma escola pronta a funcionar, mas que ficaria parada e em degradação, pois o Estado, em 2016, não tinha meios para colocar, ele próprio, a escola em actividade. Esse será sem dúvida um ponto a esclarecer.

Aconteceu então que, em 17 de Dezembro de 2019, o magistrado Wilson Pascoal de Oliveira mandou apreender, nos termos da lei processual penal, a Escola Primária e Secundária do 1.º Ciclo do KK 5000 Kilamba, actuando sob a égide do Serviço Nacional de Recuperação de Activos dirigido pela procuradora Eduarda Nascimento. Esta apreensão ocorreu no âmbito de um processo-crime referente a participação económica em negócio e tráfico de influências, e está regulada pela Lei Reguladora das Revistas, Buscas e Apreensões (Lei n.º 2/14, de 10 de Fevereiro). Habitualmente, a apreensão tem uma dupla natureza no âmbito de um processo-crime: garante a obtenção de provas e a manutenção de bens. É necessariamente uma medida provisória, até à decisão final do caso a que diz respeito.

A questão que se coloca neste processo não se refere ao enquadramento legal da apreensão, mas antes ao seu objecto. Vimos já que o estabelecimento de ensino era propriedade do Estado, bem como as mesas, as cadeiras e demais equipamentos básicos. Logo, não fará muito sentido apreender a favor do Estado aquilo que já é do Estado… A haver prática de crime, teria sido na entrega da gestão da escola sem qualquer compensação. Então, o que haveria a apreender seriam as contas bancárias ligadas à gestão da escola, bem como todos os meios de prova e bens ligados a essa actividade – mas não a escola em si, cuja propriedade não estava em disputa sequer.

Tanto quanto nos foi dado a perceber, pela consulta de vários documentos, entre os quais relatórios e abaixo-assinados dos encarregados de educação, o funcionamento da escola era adequado e correspondia às expectativas dos pais.

Ora, se assim é, teria sido mais lógico deixar a escola a funcionar sem intervenção directa, e agir a montante, i.e., junto da entidade gestora FDC. Como se referiu, apreender contas bancárias, computadores, livros de registos, dossiês, elementos contabilísticos, extractos financeiros, livros de actas, etc., era perfeitamente justificável. Pelo contrário, apreender uma escola torna-se um pouco excessivo e, neste caso, desprovido de razão, uma vez que, repetimos, a escola é propriedade do Estado, e não da entidade privada.

Juridicamente, é habitual, em circunstâncias várias, apreender imóveis e selá-los, para evitar que dentro deles se dê continuidade a actividades ilegais. Por exemplo, no caso de uma habitação que funcione como um bordel ilegal. Fecha-se a casa e evita-se a continuação da actividade. Está claro que uma escola é socialmente muito diferente, e que o interesse dos alunos deve ser tido em consideração. Não faz sentido “invadir” policialmente uma escola. Uma escola não é um bordel.

A situação que aqui se descreve serve para alertar quanto à necessidade de se criarem mecanismos específicos e focados no combate à corrupção, para evitar situações que, no final, levantam dúvidas sobre esse combate, e sobretudo sobre o bom senso e a razoabilidade que presidem a determinadas decisões.

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