Angola e Portugal: a Corrupção Que Corrói a Democracia

Ainda há poucos anos, quando recebia algum convite para falar sobre a corrupção em Angola, era para me dirigir à Investigação Criminal ou ao tribunal, com a forte possibilidade de, em seguida, ser encaminhado para a prisão mais próxima.

É bom que o tipo de convite tenha mudado e que seja agora possível falar em detalhe sobre a corrupção.

Em Angola, a corrupção não é um fenómeno meramente criminal. É, talvez, o factor que mais impede a plena afirmação da soberania do país, o seu desenvolvimento e progresso. Tenho dito que a corrupção mata. E de facto, em Angola, a corrupção mata. Mata porque nos priva dos recursos essenciais para o saneamento básico, que é o elemento essencial para prevenir doenças como a malária, que ceifa milhares de vidas todos os anos.

Portanto, não é suficiente afirmar-se que a corrupção é “um caso de polícia”. Não é apenas isso. A corrupção é um obstáculo à sobrevivência do Estado e das populações. E é nesse contexto que deve ser tratada.

O tema concreto sobre o qual gostava de deixar hoje algumas pistas é o do papel que alguns agentes e estruturas em Portugal têm desempenhado na prossecução e consolidação da corrupção em Angola. Além dos aspectos criminais óbvios, o envolvimento desses agentes e estruturas nesta teia de corrupção, em que se geram situações inimagináveis para o cidadão comum, tem um forte impacto negativo em Portugal, contribuindo para a degradação da sua democracia e do Estado de direito.

Combater a corrupção angolana em Portugal é uma forma que o país tem de defender a sua democracia e evitar o contágio putrefacto.

É sabido que não foi essa a política oficiosa portuguesa durante vários anos, tendo-se optado por acreditar que o melhor era “deixar os angolanos resolverem os seus problemas em Angola”. Por vezes, permitiu-se mesmo que as instituições portuguesas servissem para que determinadas pessoas de relevo em Angola concretizassem os seus interesses em Portugal.

Portugal escolheu ora uma política pró-José Eduardo dos Santos, ora uma política de “lavo daí as mãos”, acreditando que os problemas angolanos não eram os seus.

Hoje, a perspectiva parece ser muito diferente, e o caso Orlando Figueira tornou as autoridades portuguesas conscientes do perigo de corrosão da sua democracia e das suas instituições.

Como certamente se recordarão, o procurador português Orlando Figueira foi condenado em primeira instância por corrupção, num caso que envolve o então vice-presidente de Angola, que é também investidor de destaque em Portugal. Obviamente, a corrupção angolana estendeu os seus tentáculos até Portugal. A pergunta que se coloca é: até onde?

A análise da correspondência tornada pública no âmbito desse processo entre o então procurador-geral da República angolano João Maria de Sousa e o advogado português Paulo Blanco, também condenado em primeira instância nesse caso, demonstraram uma intimidade invulgar entre os interesses angolanos e o Ministério Público português, em especial o então procurador-geral da República portuguesa, Fernando Pinto Monteiro. De forma absolutamente bizarra,  este foi recebido na cidade de Luanda em audiência pelo presidente José Eduardo dos Santos, juntamente Cândida Almeida, à época directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal português.

Não me compete fazer queixas ou levantar suspeitas, mas como jornalista não pude deixar de ficar impressionado com essa correspondência. Por exemplo, há um email enviado por Paulo Amaral Blanco a João Maria de Sousa, com data de 18 de Janeiro de 2012, tendo como assunto de referência “Deslocação a Lisboa – Planeamento/Agenda/Objectivos”. Aí, o advogado português sugere de forma bastante confortável ao procurador angolano que, numa visita agendada a Lisboa, se encontre com Pinto Monteiro e Cândida Almeida. Escreve Paulo Blanco: “Julgo que seria bom agendarmos uma reunião com a Dra. Cândida Almeida (eu próprio poderei, se V.Exa. quiser, tratar disso), para que V.Exa possa pessoalmente agradecer-lhe a colaboração com a Procuradoria Angolana e oferecer-lhe um contentor de paracucas.” Um encontro entre o PGR de Angola e os seus homólogos em Portugal é perfeitamente compreensível. O estranho é a intermediação de tais encontros por um advogado de defesa português. Obviamente, isto faz-nos suspeitar de que se realizam reuniões à margem das agendas oficiais, movidas por objectivos obscuros.

Mais surreal ainda é a referência, no mesmo e-mail, ao modo como João Maria de Sousa deveria agradecer a Cândida Almeida pela colaboração com a PGR de Angola. Paulo Amaral Blanco sugere a oferta de um “contentor de paracucas” à magistrada.

De facto, parece ter havido, durante demasiado tempo, uma excessiva intimidade entre a justiça corrupta de Angola e as instituições judiciárias portuguesas. Tal só poderá ter contribuído para diminuir a qualidade do Estado de direito português.

Se este colaboracionismo institucional do passado é algo que me preocupa, no momento actual, e a outro nível, preocupa-me também a cumplicidade de muitos agentes privados em Portugal com a corrupção em Angola: advogados, gestores, auditores, consultores, toda uma panóplia de especialistas tem contribuído para a realização de actividades corruptas em Angola, ou pelo menos para o seu branqueamento.

Refiro um caso que acompanho presentemente, sem identificar nomes. Há uma empresa dirigida por um português, que é o seu principal accionista. Pouco tempo depois de ser criada, essa empresa foi obtendo mais de mil milhões de euros ao abrigo de contratos firmados com o Estado angolano, agindo como intermediária entre o governo de Luanda e uma multinacional norte-americana. A empresa pouco fez além de cobrar comissões. Quem redigiu todos os contratos foram advogados portugueses. Entretanto, verificou-se que, aparentemente, a empresa recebeu 75 milhões de dólares sem fazer nada e tentou vender ao Estado angolano, por 120 milhões de dólares, os mesmos quatro equipamentos pesados por duas vezes. Descoberta a alegada trapaça, é uma empresa de consultores portugueses que defende a empresa. Assim, temos uma empresa com um administrador português, um accionista português, advogados portugueses e consultores também portugueses, todos envolvidos num possível caso de corrupção em Angola. Mas a história não acaba aqui.

Ora, é a esta cumplicidade que urge pôr cobro. A transnacionalidade da corrupção e dos fluxos financeiros a ela associados elevam para um novo patamar as relações judiciais entre os Estados.

Pode parecer que, por deixar circular dinheiro corrupto de Angola ou por fornecer “especialistas” para essa actividade, Portugal fica a ganhar. Mas isso não é verdade. A conivência (mais activa ou mais passiva) para com a corrupção angolana é totalmente contraproducente e, a seu tempo, ruinosa. Ela permite que se infiltrem elementos corrosivos na sociedade e nas instituições democráticas. Progressivamente, começa-se a desconfiar dos procuradores portugueses, das instituições portuguesas, dos advogados, dos gestores. Acredita-se que um vento malsão os envolve. Em pouco tempo, os laços comunitários de confiança tornam-se frouxos, e podem mesmo deixar de existir.

Francis Fukuyama argumenta que os países prósperos tendem a ser aqueles em que as relações de negócios podem ser conduzidas de maneira informal e flexível, com base na confiança. Ora, se permitir que a corrupção angolana destrua essa confiança, Portugal estará a impedir a sua própria prosperidade. Evitar que isso aconteça é um incontornável desígnio comum pelo qual todos devemos lutar.

* Este texto serviu de base à participação na Conferência “Justiça e democracia: os perigos que assombram a democracia liberal”, realizada hoje pelo jornal online português Observador. Assista à conferência aqui

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