Os Equívocos sobre o Papel dos Juízes no Combate à Corrupção

Em várias tomadas de posse de juízes ocorridas nos últimos tempos, os dignos magistrados, nos seus discursos, têm-se empenhado em afirmar-se como combatentes de primeira linha contra a corrupção. Ora, os juízes não têm de combater a corrupção, têm é de não ser corruptos, e isto impõe uma diferença muito grande.

Um juiz não pode ser corrupto. Tal significa que não pode vender as suas decisões judiciais, não deve advogar secretamente, é imperativo que não tenha interesses em sociedades comerciais, nem explore fazendas agrícolas, nem faça favores a amigos. O juiz ou a juíza, tanto quanto é possível numa sociedade moderna, deve ser um referente de virtudes públicas morais: dignidade, espírito de serviço, imparcialidade, equilíbrio, reserva. Não tem de ser um candidato à santidade, mas sim inspirar respeito e consideração entre os seus pares.

Contudo, no exercício das suas funções como julgador, o juiz não tem de combater a corrupção. Tem de avaliar os factos que lhe são submetidos pela acusação e decidir com base neles. Quando julga, o juiz não é um combatente contra a corrupção, é um aplicador do Direito e da Justiça.

Em termos funcionais, o combate à corrupção começa por caber ao presidente da República, que lançou e muito bem esse desígnio, ao Executivo, às polícias, aos serviços de informação e ao Ministério Público. Feita uma investigação e produzida uma acusação, entra o juiz. Quando assoma à sala de audiências de um tribunal, o juiz não tem combates em mente, nem juízos preconcebidos. Leva a mente aberta para ouvir, ponderar e ajuizar sobre os factos que lhe são apresentados. Se no final estiver convicto de que a pessoa que lhe foi presente é corrupta, deve condená-la. Se tiver dúvidas ou acreditar que é inocente, deve absolvê-la. É importante sublinhar este ponto. Querendo-se que Angola seja uma sociedade livre e com progresso, deve-se fomentar uma magistratura judicial que seja independente e imparcial, e não um mero instrumento do poder executivo.

No Brasil, o caso do antigo presidente da República Lula da Silva demonstrou os perigos que as “cruzadas” judiciais comportam, desqualificando o papel dos juízes.

Lula foi condenado a pena de prisão elevada em primeira instância, e confirmada em recurso, por actos de corrupção. No entanto, o juiz que o condenou em primeira instância, Sérgio Moro, tem visto publicadas várias mensagens digitais, aparentemente verdadeiras, em que assume um papel de combatente, orienta o Ministério Público nas suas diligências contra Lula, dá instruções, indica caminhos. Ora, é claro que este juiz interiorizou como sua prioridade o combate à corrupção. No entanto, ao fazê-lo, perdeu toda a imparcialidade e neutralidade que um juiz deve ter. Quando entrou na sala de Moro, Lula já estava condenado, pois o juiz já tinha a sua convicção mais do que formada. A não ser que as mensagens sejam falsas ou estejam mal-interpretadas, o certo é que Lula, mesmo tendo praticado os factos de que é acusado, não teve um julgamento justo, e de culpado está a transformar-se, paulatinamente, em vítima. Quando entrou na prisão, o Brasil em geral condenava-o. Agora, na sua libertação, foi recebido como um herói.

É precisamente este falhanço que se deve evitar em Angola. Todo o esforço para combater a corrupção não deve ser destruído pela vitimização dos acusados. O governo, o Ministério Público e a polícia devem ter todo, mas todo, o empenho em perseguir aqueles que sejam suspeitos de corrupção e de crimes similares. A estrutura do Estado deve ser reorganizada para permitir um mais fácil e articulado combate à corrupção. Defendemos há algum tempo que deveria ser criado um gabinete, com poderes legais e processuais, composto por juristas, economistas, contabilistas e demais especialistas que tenha como foco único o combate à corrupção. A legislação deve ser aperfeiçoada, designadamente no sentido de permitir a delação premiada e os acordos judiciais, como se faz no Brasil e nos Estados Unidos. Não existe a mínima dúvida de que o Estado deve acelerar o seu combate contra a corrupção e dotar-se de instrumentos mais modernos e flexíveis. Todavia, depois de se construir um caso e de este ser entregue nas mãos do juiz, termina então o combate e entra a justiça. O juiz já não é parte do mecanismo de combate à corrupção, é parte essencial do mecanismo de aplicação de justiça, o que é bem diferente.

Quando houver condenações a pesadas penas de prisão dos corruptos em Angola, todos queremos sentir que são merecidas pelos factos praticados, e não são meras perseguições políticas de que os juízes sejam instrumento.

Todos nós temos ouvido alguns dos filhos do antigo presidente José Eduardo dos Santos a lamuriarem-se e a apresentarem-se como vítimas, falando de perseguições políticas. Podíamos perguntar onde estiveram estes rebentos da ditadura nos últimos 37 anos, mas é mais importante ter a certeza de que, se algum deles for condenado, o seja por efeito de uma decisão judicial imparcial, objectiva e equilibrada. Caso contrário, a legitimidade do combate à corrupção é sempre colocada em causa.

A existência de juízes imparciais é a melhor garantia de um sucesso estruturante do combate à corrupção e, por isso, é fundamental perceber o lugar de cada um no sistema.

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