Fábrica de Iogurtes de 40 Milhões de Euros Abandonada em Benguela

Há no Lobito, abandonado ao relento, um investimento de mais de 42 milhões de euros destinados à construção de uma fábrica de lacticínios. Um banco alemão concedeu um crédito ao governo angolano, que, por sua vez, através de um banco público (BPC), emprestou esse montante à Smart Solutions, a entidade privada que deveria ter colocado a fábrica em funcionamento.

Enquanto isso, o povo angolano (ou seja, o Estado) paga com o seu suor e a sua fome mais esta dívida a um banco estrangeiro. O governo continua a viajar por este mundo fora em busca de investimentos, e vai-se endividando cada vez mais. No país, centenas de milhões de euros e dólares em equipamentos e projectos são empurrados para o lixo.

Numa altura de crescente desemprego, esta fábrica, com todos os equipamentos caros deixados algures ao abandono, prevê criar 800 postos de trabalho directo e 1500 indirectos. Os sócios privados digladiam-se em tribunal, numa confusão que desonra o próprio sistema judicial, enquanto o governo e o BPC assobiam para o lado como se nada fosse. O BPC nem sequer tem uma garantia passada pela Smart Solutions, nunca fez um levantamento do projecto, não tem hipoteca por parte da empresa. Tudo começou no tempo dos desvarios financeiros.

Que sentido faz o  governo “chorar” por investimento estrangeiro, quando só sabe desperdiçar e nem sequer demonstra capacidade nem liderança para pôr a funcionar o que existe no país?

Contentores com material abandonado da protectada fábrica de iogurtes.

O caso

A 18 de Novembro de 2011, os cidadãos Joana Sobrinho e o cidadão Krisnne Dambi criaram, com quotas iguais, a empresa Smart Solutions, no Guiché Único de Empresas. Passados menos de três anos, a 1 de Abril de 2014, os sócios cederam equitativamente 20 por cento do capital da empresa a Rosária de Lemos.

Passados três meses, a 8 de Julho de 2014, o BPC e a Smart Solutions assinaram dois contratos de mútuo no valor de 15,4 milhões de euros (€ 15.406.288,00), para a cobertura de duas cartas de crédito e aquisição da linha de enchimento da fábrica de iogurte.

O projecto da Smart Solutions consistia em desenvolver uma indústria de lacticínios assente na construção de uma fábrica de iogurte, com uma capacidade de produção diária de 320 toneladas. O projecto localizava-se na Catumbela, Benguela. Portanto, tinha duas vantagens: criava uma indústria em que Angola se podia especializar, promovendo o emprego (previam-se 800 novos postos de trabalhos directos e 1500 indirectos); promovia o desenvolvimento de uma província que não Luanda, reduzindo a excessiva macrocefalia do país.

Nesse âmbito, o projecto foi apoiado financeiramente por via de vários empréstimos concedidos pelo Banco de Poupança e Crédito (BPC), entidade estatal. Em 2014, foram celebrados vários contratos de empréstimo com esse banco. Um deles foi no valor de EUR 14.264.000,00, para aquisição e importação de uma linha de produção dos iogurtes. Para o efeito, abriu-se uma carta de crédito, que seria convertida em crédito após o processo de formalização da linha aberta entre o Deutsche Bank da Alemanha e o BPC. E houve ainda outro empréstimo, no valor de EUR 7.700.000,00, para aquisição da linha de empacotamento da fábrica. Nessa sequência, foi aberta outra carta de crédito, que deveria formalizar-se em crédito, proveniente da linha de crédito do Deutsche Bank.

Após a concessão dos variados empréstimos, totalizando 42 milhões de euros, o processo começou a correr mal. A Smart Solutions ficou a aguardar por mais de nove meses o endosso dos documentos por parte do BPC para o processo de desalfandegamento. Este processo provocou um desgaste enorme na empresa, tendo aumentado sobremaneira os custos do projecto em mais cinco milhões de dólares, segundo afirma a gerente.

Por sua vez, o BPC não terá desembolsado os restantes montantes para o projecto, que tinham ficado contratados em 2014.

Quer isto dizer que, de repente, a empresa viu-se pejada de atrasos e sem dinheiro para continuar a construção da fábrica. Após esses eventos, tudo começou a correr ainda pior, e a situação passou a ser de litígio com o BPC.

O resultado foi que a indústria não foi criada, os empregos ficaram no papel, a maquinaria importada, nova, ficou ao relento, e o BPC tem de pagar a dívida ao banco alemão. Há custos e não há proveitos. De um projecto promissor, chegou-se a uma situação diabólica.

Caixas armazenadas com material da projectada fábrica.

Disputa entre sócios

Com os valores disponibilizados, os sócios nunca mais se entenderam. No total, Joana Sobrinho e Krisnne Dambi têm intentado, um contra o outro, perto de dez acções judiciais por má gestão e desvio de fundos, entre outras queixas.

Em 2015, o Tribunal Provincial de Benguela decidiu a favor de Joana Sobrinho, na Providência Cautelar de arresto de bens sob Processo n.º 657-S/015. Em causa estava um contrato de construção com a empresa Amel Internacional, de um construtor chinês. “Ele [Krisnne Dambi] negociou com essa empresa de forma fraudulenta e recebeu desta dinheiro para a compra de duas viaturas para uso pessoal”, explica Joana Sobrinho. A empresa foi ainda obrigada, pelo tribunal, a restituir o equivalente a um milhão e meio de dólares pela não realização de obras.

Seguiu-se um processo de oposição intentado pelo construtor chinês contra a Smart Solutions e na qual Krisnne Dambi foi testemunha da parte do construtor. Essa acção, Providência Cautelar n.º 0571/15, também foi a favor de Joana Sobrinho.

Desde 2015 corre ainda uma acção de condenação e indemnização. Também corre, desde 2017, uma queixa-crime contra Krisnne Dambi por furto de veículos, sob processo n.º 652. Trata-se da acusação segundo a qual, na qualidade de gerente, Dambi adquiriu quatro veículos por cerca de 250 mil dólares, para a sociedade, mas que foram distribuídos por familiares seus.

“Distribuímos três veículos para cada um dos sócios. Os veículos eram uma antecipação de lucros”, defende-se Krisnne Dambi, referindo-se também ao arquivamento desta queixa pelo tribunal. “Isso é uma grande mentira! Ora vejamos, quem distribui lucros antes de montar o que se propôs fazer? Só mesmo na cabeça de um psicopata social. Infelizmente, este processo foi arquivado no âmbito da amnistia geral de 2015”, rebate Joana Sobrinho.

“Com a crise económica houve um atraso no financiamento da construção da fábrica. Tivemos total apoio e cooperação do BPC”, diz e mesma interlocutora. Segundo Krisnne Dambi, o fracasso do projecto “tem simplesmente a ver com a gestão. Tínhamos três gestores que respondiam solidariamente de forma colegial, por todos os actos. A KPMG apresentou um modelo de governação do projecto, para a sua profissionalização. Eu fui afastado da gerência, em 2015, por voto da maioria. A partir daí, a empresa passou a ser gerida exclusivamente por Joana Sobrinho, porque a outra sócia [Rosária de Lemos] renunciou à sociedade”.

Krisnne Dambi acusa Joana Sobrinho de ter gerido mal a empresa. “Em 2017, solicitámos a prestação de contas à gerente. Ela demitiu os trabalhadores, tornou-se totalitária na gestão da empresa, não fez prestação de contas e fez movimentos bancários que afectavam a saúde financeira da empresa. Em 2016, o BPC fez um desembolso de 926 milhões de kwanzas. No mesmo dia, esse valor foi parar às contas do empreiteiro RMC [Rui Madaleno Construções] sem justificativo de contrato de empreitada e pagamentos das despesas com o Porto do Lobito”, cita Dambi a título de exemplo.

“A RMC não fez as obras [de construção da infra-estrutura para a montagem da fábrica prefabricada]. Disponibiliza espaço para guardar equipamentos. É uma forma perfeita de branqueamento de capitais”, afirma o advogado de Dambi, Denis de Almeida.

“Fomos informados de que a RMC retirou máquinas e equipamentos do projecto. Houve artimanhas e descaminhos de fundos. Iniciei uma acção judicial contra a gerente, que nos foi favorável, para salvaguarda dos bens da sociedade”, diz Krisnne Dambi. O referido advogado diz categoricamente que, dos vários processos movidos pelos sócios um contra o outro, só “há sentenças contra ela [Joana Sobrinho] e nenhuma contra o Krisnne”.

Joana Sobrinho afirma que assumiu a gestão integral da empresa quando esta se encontrava “delapidada”. “Não havia condições para manter custos com o pessoal. Durante o período da minha gestão passei a organizar as contas e tudo o que não estava bem devido a situações criadas pelo sócio, enquanto aguardávamos que o BPC disponibilizasse o resto do financiamento para obra civil”, argumenta Joana Sobrinho.

Sobre a transferência de fundos, a sócia argumenta que, no total, foram disponibilizados 999 milhões de kwanzas para três grandes operações. Primeiro, para o desalfandegamento de mais de 150 contentores com os equipamentos da fábrica, que já haviam sido postos em leilão pelo porto do Lobito por falta de pagamento. Segundo, para o transporte dos contentores e, terceiro, para o pagamento de 20 por cento da empreitada de construção da infra-estrutura para a montagem da fábrica.

“Conforme acordado com o BPC, precisávamos encontrar uma empresa de confiança que devesse ir ao leilão arrematar os equipamentos, sendo que havíamos perdido o direito sobre eles. Esta empresa foi a RMC”, conta Joana Sobrinho. “Em paralelo, solicitámos ao Ministério dos Transportes uma atenuação de parte da dívida. Desta forma, a RMC fez a restituição dos valores correspondentes a esta acção, temos tudo documentado.

“Antes de retirarmos os contentores do porto, tivemos uma inundação no Lobito. O Rui Madaleno disponibilizou-se para armazenar os equipamentos mais sensíveis em lugar seguro, nas suas instalações, onde permanecem em segurança”, afirma a sócia.

Em 15 de Fevereiro de 2019, a juíza Carla Santos Cambanje, da 2.ª secção da Sala do Cível e do Administrativo do Tribunal Provincial de Luanda, no âmbito do processo n.º 3216/17-A1, suspendeu Joana Sobrinho das funções de gerente dessa sociedade. Essa suspensão foi decidida ao abrigo do artigo 290.º da Lei das Sociedades Comerciais (LSC).

“Aparenta ser entendimento do Tribunal Supremo que a figura da suspensão do gerente não existe, devendo o artigo 290.º da LSC ser interpretado como conferindo ao tribunal um direito de destituição de gerente”, argumenta o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde. “Pelo menos parece ser isso que consta da decisão do Tribunal Supremo de 21 de Março de 2019, proferida na 1.ª secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal e Aduaneiro no caso Dudik Hazan”, aduz o jurista.

 “Nem em 50 anos esse projecto vai avançar. Quem concebeu este projecto fui eu. Fizemos uma proposta de pagamento de um milhão de dólares para a saída de uma das sócias [Joana Sobrinho]. O problema é único e simplesmente de gestão: os donos querem ser gestores”, acusa Dambi

O advogado de Dambi acusa o Serviço de Investigação Criminal (SIC) de ter engavetado a queixa do seu cliente contra a sua sócia, que acusa de alegado abuso de confiança e branqueamento de capitais. “O SIC não toma as diligências necessárias para o arresto de bens da sócia [Joana Sobrinho]. O gerente da RMC, Rui Madaleno, nunca foi ouvido pelo SIC”, queixa-se o advogado. “Há inércia incompreensível por parte do SIC, sobretudo do procurador Mafuta, que está com o processo. Porque está a emperrá-lo? Se o SIC não age, quem pode faze-lo? O procurador sabe por que está a emperrar o projecto”, denuncia Denis Almeida.

Falhas e falhas

Este caso é um de entre muitos exemplos de tentativas falhadas de arranque industrial. Não por falta de capital, mas devido aos constrangimentos institucionais de Angola e às escolhas na concessão de créditos.

É preciso entender de uma vez por todas que ponderar não existirá qualquer arranque industrial em Angola, a menos que se coloquem as instituições – os ministérios, os bancos, os serviços públicos – a funcionar com velocidade e sem entraves.

Neste momento, existe uma maquinaria novinha em folha – no valor de 42 milhões de euros – a apanhar sol, chuva, vento poeira e a estragar-se. Há um banco público, o BPC, a pagar uma dívida em divisas a um banco estrangeiro, mas não há qualquer empresa a funcionar.

O governo deve intervir imediatamente, chamando o banco e os sócios para determinar os factos e decidir como recuperar o investimento de mais de 42 milhões de euros que todos os angolanos são obrigados a pagar. Enquanto o BPC nada fizer e os sócios lutarem entre si, Angola perderá mais empregos, mais dinheiro, mais fé nas instituições do Estado. É preciso acabar com esta forma de brincar com dezenas de milhões de euros.

Cabe aos tribunais, em Luanda e em Benguela, juntar todos esses processos, cooperar entre si e decidir com celeridade e justiça sobre esta farsa.

A mensagem que este caso nos envia é simples: as instituições devem ser postas a funcionar: tribunais, bancos, empresas devem desenvolver as suas actividades sem obstáculos e sem complicações. Este é um dos primeiros passos para a recuperação económica.

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