“Comandante Trovoada” Causa Assalto à Cadeia em Saurimo

Um operador de posto de combustível, rapper nas horas vagas, ex-militar e com historial de delinquência autodenominou-se comandante militar. Encontra-se detido numa prisão em Saurimo. No princípio do ano de 2019, declarou nas redes sociais o dia 30 de Outubro como o dia de início da “Guerra Armada” nas Lundas.

Nesse exacto dia, um grupo de cidadãos organizou uma acção armada e atacou a cadeia de Luzia, a 30 quilómetros de Saurimo, província da Lunda-Sul, com o intuito de libertar um detido não especificado. De acordo com o relato policial, a investida saldou-se em cinco mortos.

Em comunicado de imprensa emitido no dia seguinte, o Comando-Geral da Polícia Nacional informou que “as forças de protecção ao estabelecimento penitenciário, em reacção, causaram a morte de cinco indivíduos, um ferido e detiveram 18 elementos”.

No mesmo comunicado, a Polícia Nacional descreve os atacantes como “elementos desconhecidos, munidos de armas de fogo, brancas e de arremesso”. Tendo sido capturados 18 destes elementos, certamente as autoridades policiais tê-los-ão identificado, bem como às suas motivações. É fundamental que se revelem as identidades dos capturados e que estes possam, à luz da legislação angolana, ter direito a advogados. Só assim se fará justiça.

O comunicado também é omisso quanto à identidade do indivíduo por quem os atacantes arriscaram, e alguns perderam, a vida, tendo o objectivo de o fazer evadir da cadeia. O documento explica apenas que esse indivíduo não escapou da prisão, tendo, aliás, sido encarcerado por posse ilegal de arma de fogo.

Segundo a investigação do Maka Angola, trata-se do autodenominado “Comandante Trovoada”, um homem na casa dos 30 anos, antigo funcionário das bombas de combustível da Pumangol, no Bairro da Manauto, em Saurimo.

Fonte policial confirma a identificação do sujeito, levada a cabo pelo Maka Angola.

“Encontro-me preso aqui na Comarca de Luzia desde o dia 9 de Setembro de 2019 fisicamente, mas espiritualmente estou livre pensando na vossa liberdade meu povo”, escreve o detido, alegadamente a partir da cadeia.

O “Comandante Trovoada” apresenta-se como fundador e líder da Frente Revolucionária para Independência Sociológica e Integridade da Lunda-Tchokwé (FRISILT).

Na sua página no Facebook, onde se apresenta como “Comandante”, o cidadão tem uma foto de perfil em que aparece vestido de camuflado, empunhando uma arma Kalashnikov.

Os seus discursos belicistas, apelando à separação das Lundas, são explícitos desde o ano passado. Não se antevia a sua capacidade de mobilizar indivíduos para atacar uma cadeia, munidos de catanas e facas, da mesma maneira que ocorreu a 4 de Fevereiro de 1961, dia hoje celebrado em todo o país como o assinalando o início da Luta de Libertação Nacional.

“Conheço bem esses rapazes. O Trovoada é um desertor das Forças Armadas Angolanas (FAA), então estacionado em Cabinda. Em 2017, passou seis meses na cadeia, em Saurimo, por assaltos à mão armada contra os armazéns pertencentes a cidadãos oeste-africanos”, denuncia José Zecamutchima, líder do Movimento do Protectorado Lunda-Tchokwé.

Segundo Zecamutchima, já em liberdade, em 2017 “o Trovoada começou a falar em iniciar a guerra”.

“Como conhecemos bem os familiares de alguns dos seus companheiros, fomos falar com eles, para evitarem a linguagem da violência, mas não nos ouviram. Até nos insultaram como caducos”, prossegue.

Zecamutchima refere que o ataque à cadeia foi perpetrado por cerca de 30 jovens. “Atacaram só com catanas. Tanto quanto sabemos já há oito mortos e um em estado grave. A polícia capturou mais dois feridos nas matas”, afirma.

Anúncio de guerra

Numa das suas publicações, a 30 de Março, o autodenominado comandante anunciou: “30 de Outubro de 2019 ‘Guerra Armada’”.

A partir daí, foi lembrando regularmente os seus seguidores, dezenas dos quais escrevem comentários, sempre a incentivá-lo e a manifestarem o seu apoio à “Guerra”.

“Não é preciso uma facha [faixa] com escrita na minha testa, talvez um título de doutor ou engenheiro para acreditarem em mim que no dia 30 de Outubro iniciarei com a guerra armada”, publica na sua página do Facebook a 18 de Junho.

“Se no dia 30 de Outubro de 2019 eu, Comandante Trovoada, não iniciar com a guerra armada junto com a minha tropa da FRISILT no solo pátrio Lunda para libertar este povo, todos aqueles que depositaram confiança em mim e acreditam na FRISILT apedrejam-me até a morte. Revolução, Revolucionário Sempre Até ao Fim”, publica o Comandante Trovoada a 30 de Julho.

No dia 30 de Agosto, Trovoada revela ter sido detido em sua casa, a 13 de Julho passado, por agentes do Serviço de Investigação Criminal (SIC). Conta ter sido libertado três dias depois, e levado e acompanhado de volta a casa por investigadores do SIC.

Nessa altura, foi colocado sob termo de identidade e residência, com o dever de se apresentar no SIC. “Tenho ido, inclusive no dia 9 de Agosto estarei lá para verem-me”. A seguir, alega que supostos agentes dos serviços secretos foram à sua terra natal, no município de Muconda, ameaçar membros do seu movimento.

De forma prolífica, o jovem tem publicado, na sua página, inúmeras cartas abertas dirigidas a vários dignitários nacionais e internacionais, em particular aos presidentes da República João Lourenço e Marcelo Rebelo de Sousa. A este pede, a 14 de Agosto passado, a “entrega formal da Lunda, conforme o mapa geográfico da Lunda, antes do seu fraccionamento pelos europeus”. Nesse mapa, pede também a entrega das províncias, “tais como: Uíje, Malanje, Kwanza-Norte, Bié, Cunene, Huambo”, que do seu ponto de vista “pertencem ao Estado Lunda”.

A 8 de Setembro, o gasolineiro ameaça: “guerra avisada não mata soldado, isto quer dizer que o soldado que for achado ou encontrado no dia 30 de Outubro nas unidades, nos postos policiais ou em qualquer lugar com uma arma na mão, morrerá sem piedade”. Apela então a que todos os soldados deponham as armas, para ele “encontrar as unidades e postos vazios”; só assim, afirma, “pouparei vossas vidas”.

As publicações seguintes no Facebook já são feitas a partir da cadeia, não tendo sido possível confirmar se as mesmas são efectivamente escritas por si.

Com o apelo directo à guerra, segundo um conhecido advogado, o rapper incorria no crime de tentativa de incitamento à subversão armada. Tendo sido perpetrado o ataque à cadeia para sua libertação, o advogado enquadra já os discursos do Comandante Trovoada no crime de “incitamento à subversão”.

O músico

Um funcionário público que regularmente abastece no posto onde Trovoada trabalhava fala da sua faceta musical.

“As músicas dele são muito divulgadas nas Lundas, através dos telefones, de pen drives, redes sociais e gravações. O Trovoada diz que defende o Leste de Angola por causa da exclusão social e do nosso sofrimento”, explica o nosso interlocutor.

Sobre as declarações de guerra de Trovoada nas redes sociais, o mesmo funcionário também se manifesta surpreendido: “Não sabia.”

Por sua vez, um taxista, que também prefere manter o anonimato, afirma que “o Comandante Trovoada canta coisas boas sobre os males das Lundas. Os jovens gostam dele”.

“Nunca vi a página dele no Facebook. Não sei do apelo dele à guerra. De resto, não sei mais nada”, justifica o taxista.

A radicalização nas Lundas

Um general, familiarizado com os dossiês sobre focos de tensão no país, faz notar que, nos últimos dez anos, se tem acentuado a radicalização de certos elementos que apelam à luta armada nas Lundas. De acordo com este militar, esses elementos aproveitam-se da prática de extracção dos recursos minerais, sem benefícios para as comunidades locais, da exclusão social e da negligência política como instrumentos de recrutamento por via do desespero. Apesar das semelhanças com os níveis de descontentamento em “Cabinda, Cunene e, por maioria de razão, nas fronteiras e nos Dembos (Bengo)”, o general afirma que a radicalização nas Lundas é já incomparável. E prossegue: “Provavelmente, tem havido interesses cruzados para se abafar dossiês mais complexos como este [das Lundas].”

“Muitos [oficiais militares] acompanham com preocupação os casos do Mali, Nigéria, Moçambique e outras partes do Continente, onde armas e militares cruzam com tendências separatistas exportadas por grupos jihadistas globais que pretendem a instabilidade”, acrescenta.

Todavia, o general lembra a experiência combativa do país como factor de defesa da integridade territorial: “Desenganem-se todos aqueles que pretendem aproveitar-se do actual desgoverno das FAA, como temos alertado. Angola tem quatro gerações de combatentes e espaço de inteligência militar eficaz.”

Manifesto sociológico

Entre Abril e Maio de 2009, as autoridades governamentais detiveram, de forma breve, mais de 270 cidadãos, na Lunda-Norte e Lunda-Sul, suspeitos de pertencerem à Comissão do Manifesto Jurídico e Sociológico do Protectorado da Lunda-Tchokwé (CJSP). José Filipe Malakito, então líder da referida comissão, foi detido na mesma altura. Malakito passou cerca de dois anos na cadeia, enquanto 37 membros da sua comissão passaram mais tempo, por advogarem insistentemente a independência das Lundas.

Desde então, nas Lundas, têm sido frequentes as detenções arbitrárias com motivações políticas, assim como o aumento da inépcia dos governos locais, da exclusão e das injustiças sociais, da violência e de outros factores de descontentamento social.

Com o afastamento de Malakito, emergiu o Movimento do Protectorado Lunda-Tchokwé, que passou a advogar a autonomia das Lundas. As manifestações dos seus seguidores, sobretudo na região do Cuango, desencadearam sempre a intervenção das Forças Armadas Angolanas. Em 2017, 42 dos 80 seguidores do protectorado, detidos na manifestação de 24 de Maio do mesmo ano, foram condenados por crime de assuada pelo Tribunal Provincial da Lunda-Norte. Eram acusados de participação em reunião com armas de fogo. Na altura, o líder do movimento, José Zecamutchima, denunciou o julgamento como uma farsa e referiu que os seus membros exibiam apenas cartazes, de forma pacífica, quando foram detidos.

O caso do “Comandante Trovoada”, bem como todo o histórico que o antecede, faz adivinhar que os focos de tensão política, social e militar assumem em Angola uma expressão e importância mais significativas do que o poder político parece querer assumir.

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