Caso Tomás: Combater a Corrupção com Injustiça é Corrupção

O primeiro artigo publicado no Maka Angola a 13 de Agosto de 2009, há mais de dez anos, foi contra a corrupção. Mais concretamente, tratava-se de uma denúncia dos negócios paralelos do então procurador-geral da República, general João Maria de Sousa. Desde sempre, o nosso primeiro objectivo tem sido combater a corrupção, que constitui o grande impedimento, o maior obstáculo, à democracia e ao progresso de Angola. Por essa mesma razão, temos aplaudido e apoiado as iniciativas de João Lourenço, actual presidente da República, contra a corrupção.

Todavia, há dois aspectos que são fundamentais para um bem-sucedido combate à corrupção. O primeiro é a existência de legislação e estruturas adequadas. Temos propugnado pela criação de leis modernas e avançadas, que permitam, por exemplo, premiar a colaboração, e que, claro, possibilitem o confisco objectivo e não criminalmente dependente, instrumento fundamental para prevenir e combater a corrupção. Acreditamos igualmente que é necessária uma estrutura formal especial, formada por equipas mistas de advogados, economistas e auditores, e que disponha de orçamentos adequados, especializada na luta contra a corrupção.

Se a existência de legislação adequada e uma equipa especializada são o primeiro ponto, que consideramos essencial, para combater esta doença endémica, o segundo é que estes dois procedimentos sejam concebidos e implementados de acordo com a justiça e a lei.

Combater a corrupção sem cumprir a lei, atropelando os comandos normativos, apenas tendo em conta as impressões e as vontades individuais, é, em si mesmo, corrupção. Não se combate a corrupção com corrupção.

O processo de Augusto Tomás

Justamente neste contexto, temos assistido ao julgamento do antigo ministro dos Transportes Augusto Tomás e ficamos perplexos com algumas irregularidades formais com que somos confrontados. A condenação de Augusto Tomás, e de todos os outros que sejam culpados, tem de obedecer a um processo formal adequado e substancialmente justo.

Augusto Tomás foi condenado, no dia 15 de Agosto de 2019, a uma pena de prisão superior a 14 anos. Dessa condenação, interpôs imediatamente recurso, com efeitos suspensivos, nos termos do artigo 645.º e seguintes do Código do Processo Penal. Efeitos suspensivos quer dizer que a condenação inicial não teria seguimento até à decisão do recurso. Portanto, interpondo recurso, a condenação a pena de prisão fica “congelada”. Augusto Tomás só poderia ser mantido sob custódia caso lhe fosse decretada a prisão preventiva.

A prisão preventiva está regulada pela Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro, designada como Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal. Os prazos da prisão preventiva estão vertidos no seu artigo 40.º, sendo de quatro meses sem acusação, de seis meses sem pronúncia e de 12 meses sem condenação em primeira instância. Estes prazos podem ser acrescidos, todos, de dois meses em caso de especial complexidade, por despacho devidamente fundamentado.

Augusto Tomás foi detido a 21 de Setembro de 2018, e condenado em primeira instância a 15 de Agosto de 2019. Face à letra da lei, poderia ficar em prisão preventiva até 21 de Setembro de 2019, sendo esse prazo eventualmente susceptível de prorrogação, devidamente fundamentada, até 21 de Novembro de 2019.

O problema é que a lei obriga a determinados formalismos que é essencial respeitar, pois está em causa, talvez, o direito individual mais importante, que é o direito à liberdade. A liberdade é um direito humano fundamental, cuja limitação deve decorrer somente da Constituição e da lei (n.º 2 do artigo 36.º da Constituição).

Os atropelos jurídicos na prisão preventiva do ex-ministro

O artigo 39.º, n.º 1 c) impunha que, na altura da condenação de Augusto Tomás, fossem revistos os pressupostos da prisão preventiva, sob pena de irregularidade, como aliás deviam ter sido revistos anteriormente de dois em dois meses (artigo 39.º, n.º 1 a) da Lei das Medidas Cautelares). Obrigava, também, caso o processo não fosse declarado de especial complexidade, a que ele fosse libertado a 21 de Setembro de 2019.

Ora aparentemente, apenas por despacho de 19 de Setembro de 2019, o actual presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo (que condenou Augusto Tomás em primeira instância), veio prolongar os dois meses de prisão preventiva. Alegou, nessa data, a referida especial complexidade do processo. Joel Leonardo fê-lo um mês depois da condenação e dois dias antes de terminar o prazo de prisão preventiva.

É evidente que de trata de um atropelo às fórmulas legais, o qual pode configurar uma clara violação de competências, uma vez que após a prolação do acórdão de primeira instância, e uma vez admitido o recurso, o tribunal de primeira instância esgota o poder sobre o processo, como previsto no artigo 666.º do Código do Processo Civil, que determina: “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.” O poder do julgador termina com a sentença, salvo se houver necessidade de rectificar erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e reformulá-la quanto às custas e multas, o que não se aplica ao caso em apreço.

Aliás, o despacho em causa, de 19 de Setembro de 2019, até diz contraditoriamente: “… terminado que está o julgamento em primeira instância afigura-se, pois, judiciosa a prorrogação do prazo por mais dois meses.” Face ao exposto, é simples perceber que o juiz Joel Leonardo nunca devia ter prorrogado esta prisão em Setembro, porque tinha igualmente consciência de que a sua fase de intervenção no processo havia terminado em Agosto.

As indecisões do Tribunal Supremo

Recorde-se que o juiz Joel Leonardo já havia violado, no âmbito deste processo, a regra do juiz natural, porquanto o processo foi distribuído ao juiz Martinho Nunes, que proferiu o despacho de pronúncia. Após interposição de recurso do despacho de pronúncia, este foi decidido pelo juiz Joel Leonardo, que a partir daí avocou o processo distribuído a outro juiz, violando uma norma jurídica básica.

Interposto o recurso para o tribunal de apelo, caberia a este pronunciar-se sobre a prorrogação, ou não, da prisão preventiva. Uma vez distribuído o processo a um relator, este, antes de ver a substância do processo, deveria imediatamente ter verificado a ilegalidade da prisão.

Quanto ao juiz de primeira instância, Joel Leonardo, não tinha jurisdição sobre o processo; como tal, tendo agido sobre o mesmo extemporaneamente, violou a lei, pelo que a prorrogação será nula, nos termos do previsto nos artigos 144.º e 145.º do Código de Processo Penal.

Outro facto digno de realce é a ofensa à dignidade da pessoa humana, consagrada como esteio fundamental da Constituição angolana (artigo 1.º), naquilo que respeita à família de Augusto Tomás. Sendo ele o suporte dos seus pais, que têm 90 anos de idade, e da demais família, o bloqueio total das suas contas impede que seja garantido a estes o mínimo indispensável de sobrevivência. A verdade é que qualquer bloqueio tem de deixar mínimos de subsistência que devem ser respeitados, e que permitam o alimento e a consecução das necessidades essenciais das pessoas dependentes.

É inconstitucional o bloqueio puro e indiscriminado de todos os bens, no caso de esse bloqueio não permitir o cumprimento das necessidades básicas. Também é estranho que, tendo a ordem de bloqueio das contas sido proveniente da Procuradoria-Geral, não se tenha o tribunal pronunciado sobre tal facto. É a esta instituição que cabe decidir sobre a perda ou não dos bens, e sobre a manutenção de bloqueios.

Augusto Tomás interpôs uma providência cautelar não especificada, solicitando que deixassem retirar mensalmente uma quantia para pagar os salários de funcionários de uma empresa de que é sócio e cujas contas foram também congeladas pela PGR, atirando 350 pessoas para o desemprego e colocando estas famílias numa situação precária. O tribunal provincial decidiu pela sua incompetência a este respeito, justificando que o Tribunal Supremo é que tinha competência para o efeito, ao passo que o Tribunal Supremo não se pronuncia sobre tal assunto na sua decisão. Não se compreende como é que o Estado angolano, que consagrou como crime de violência doméstica a falta de prestação de alimentos pelos pais, impede um cidadão de prestar alimentos aos filhos, seis dos quais são menores de idade, sendo que pelo menos dois tiveram de desistir dos estudos por falta de pagamento.

O que se vê neste caso, que é o único de um alto dirigente que chegou a julgamento, é que há um descuido muito grande com a aplicação do Direito.

Mas o respeito pelo Direito é primacial, e os fortes de hoje poderão ser os fracos de amanhã, como os fracos de hoje são os fortes de ontem. Augusto Tomás era forte ontem e é fraco hoje. Rui Ferreira era forte ontem e é fraco hoje. Amanhã, o mesmo pode acontecer aos governantes e juízes do Tribunal Supremo, incluindo o seu actual presidente, Joel Leonardo.

Sem sabermos como se move a roda da fortuna, apenas o respeito pelo Direito garante que, sejamos fortes ou fracos, seremos tratados com justiça e equilíbrio.

Por isso, tratar Augusto Tomás com justiça é o mesmo que tratar cada um de nós com justiça, apenas assim se garantindo que o combate à corrupção é sério e veio para ficar, sendo as normas aplicadas a todos, de igual modo e sem excepção.

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