As Turbinas Que Viveram Duas Vezes

Em Angola, há formatos de negócio tão extraordinários que deixam perplexos os maiores ladrões do mundo.

Hoje descrevemos o modo como a empresa AEnergia, propriedade do cidadão português Ricardo Filomeno Duarte Leitão Machado, tentou vender ao governo angolano quatro turbinas pertencentes a este mesmo governo angolano. O valor total das turbinas, para o sector de energia, é de 120 milhões de dólares. Ou seja, com mera conversa fiada, a AEnergia receberia ilegalmente 120 milhões de dólares.

Como pode a AEnergia ter sequer imaginado esta possibilidade? É simples: bastou-lhes pensar na forma como, em 2015, engendraram maneira de receber do governo de José Eduardo dos Santos um pagamento de 75 milhões de dólares por serviços inexistentes.  
Em breve chegaremos aos pares angolanos de Ricardo Machado.

Há quem entenda que o tempo de farra, de roubo ilimitado, deve continuar. Para esses, qualquer freio à pilhagem do que é de todos os angolanos é contestado e apelidado de grande injustiça. Esses ladrões e aventureiros, quando sentem os seus interesses postos em causa, fazem tudo para passarem a ser vistos como vítimas, sempre rodeados pelas carpideiras de serviço, que são sobretudo as grandes firmas de advogados, quer em Portugal quer em Angola, os bandos de consultores internacionais e as empresas de relações públicas, sempre diligentes no branqueamento da imagem.

Ao assunto!

Temos acompanhado as aventuras e desventuras da empresa AEnergia S.A, mais conhecida por AEnergy S.A, designação das suas várias offshores por este mundo fora.

Constituída em 2012, em pouco tempo a AEnergia  obteve contratos no valor de dois mil milhões de dólares com o Estado angolano nos sectores dos transportes e da energia.

Factos por nós reportados estão já a ser investigados pelas autoridades judiciárias em Angola. Contudo, há uma outra história protagonizada pela mesma empresa na área da energia que tem manifesto interesse.

As turbinas

Em 2013, o governo angolano, a multinacional norte-americana General Electric (GE) e a AEnergia assinaram um memorando com vista ao reforço da capacidade de produção de energia em Angola.

Na sequência deste memorando foi obtido um financiamento de 1,1 mil milhões de dólares sindicado pela GE Capital, o braço financeiro da multinacional dos Estados Unidos, que permitiu a elaboração de variados contratos de fornecimento de turbinas, remodelação de material e equipamentos, bem como de prestação de serviços variados dentro da área.

Na versão inicial da contratação e dentro do pacote financeiro de mil milhões, o Estado angolano adquiria oito turbinas à GE, por intermédio da AEnergia. À partida, não há explicação racional, para além dos esquemas de corrupção então promovidos por José Eduardo dos Santos, para a necessidade de intermediação da AEnergia.

Tendo-se começado a executar os contratos, o Ministério da Energia e Águas, que representava o Estado, observou que a AEnergia dispunha de 14 turbinas, e não oito. Aparentemente, a empresa de Ricardo Machado explicou ao governo que o excesso de seis turbinas não estava ligado a estes procedimentos.

Em 2018, o ministro da Energia e Águas, João Baptista Borges, verificou que era necessário um reforço da capacidade energética no Lubango, Dundo e Tômbwa.

Nessa medida, propôs ao presidente João Lourenço a aquisição de quatro das seis turbinas obtidas fora da contratação pela AEnergia. O financiamento dessa aquisição seria realizado ao abrigo do contrato de 1,1 bilião de dólares acima referido.

Para garantir o cabimento da verba, havia que diminuir o valor de outra parte da contratação. Neste caso, a proposta ministerial solicitava a redução dos valores de prestação de serviços referentes à Central de Energia do Soyo I. Diminuía-se de um lado e aumentava-se do outro. E, assim, dentro do valor de financiamento contratado, obtinham-se mais quatro turbinas. Era este o racional da proposta governamental.

Os problemas começam a surgir quando se levou essa proposta à AEnergia e à GE. Numa reunião a 5 de Dezembro de 2018, nos escritórios do Ministério da Energia e Águas, aparentemente, surgiu uma discrepância.

De forma peremptória, conforme registos documentais, os representantes da GE, Wilson Dacosta e Nélia Dias, afirmaram que tais turbinas já tinham sido financiadas e pagas pela GE Capital no âmbito do empréstimo contratado pelo Estado angolano.

Por carta de 6 de Dezembro de 2018, Elisee Sezan, directora executiva da GE Gás e Energia (África subsaariana) clarificou que os seus representantes tinham razão e que já tinham sido vendidas e enviadas 12 turbinas a Angola, no âmbito de referido financiamento.

No dia seguinte, Wilson Dacosta, representante da GE Angola, informou, por email de 7 de Dezembro de 2018, com cópia para Elisee Sezan, da GE Power, que a GE Capital já tinha financiado e pago 12 turbinas, e não oito.

Vender duas vezes

O que se deduzia destas informações era que as turbinas adicionais que a AEnergia queria vender ao governo, afinal, já tinham sido compradas. Corria-se o risco de adquirir as mesmas turbinas por duas vezes…

Com estes dados, que deixaram o governo perplexo, as autoridades resolveram agir.

Perplexidade maior deve ser a dos cidadãos, os contribuintes. Há uma questão a que o titular da Energia e Águas, João Baptista Borges, deve responder publicamente. Tendo sido o governo a contratar o crédito junto da GE Capital, como pode ter manifestado ignorância sobre os gastos que estavam a ser feitos em nome do governo? Negligência, “ordens superiores” ou o quê?

Assim, em 18 de Dezembro de 2018, o ministro da Energia e Águas comunicou ao presidente da República, o esquema de saque.

Na sua missiva, o ministro denunciou a quebra de todos os vínculos de confiança entre a AEnergia e o governo de Angola e solicitou a João Lourenço o afastamento desta empresa do processo. De então em diante, o governo estabeleceu uma relação directa com a GE.

A multinacional norte-americana irá encarregar-se de efectuar a montagem das turbinas no Lubango, Dundo e Tômbwa directamente. Seguiram-se os trâmites de cessação das relações com a AEnergia e a consolidação da relação sem intermediários com a GE. Do encerramento das contas com a AEnergia, resultou que esta deverá ao Estado cerca de 118 milhões de dólares.

Pelo Decreto Presidencial n.º 155/19 de 23 de Agosto, invocando a violação dos princípios da confiança e boa-fé, o ministro foi autorizado a rescindir os contratos com a AEnergia.

Com efeito, tomou de seguida a posse administrativa dos equipamentos detidos pela AEnergia e pagos pelo governo ao abrigo do acordo com a GE Capital. Já em Setembro de 2019, o ministro da Energia e Águas enviou uma extensa exposição à Procuradoria-Geral da República sobre o tema, cujo objectivo essencial era arrolar as turbinas em causa.

Depois disso, a AEnergia reagiu, reclamando da decisão do ministro e, naturalmente, o processo seguirá os seus trâmites.

Estes são os factos que apurámos e que permitem traçar um desenho de como funcionava o Estado no final do mandato de José Eduardo dos Santos. Não funcionava. Era o pasto de um grupo muito restrito de familiares e pessoas a estes ligadas, onde as instituições e os procedimentos não tinham força nem robustez suficientes para se impor.

Na verdade, a obra principal de José Eduardo dos Santos foi abolir o Estado. Foi uma obra imensa de desmoronamento institucional. Quanto tempo levará a reconstruir o Estado e a sua credibilidade?

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