Primeiro Comentário sobre o Orçamento e a Política Macroeconómica

O Ministério das Finanças produziu um conjunto de diapositivos onde explicita os aspectos essenciais da sua proposta de Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2020.

Antes de nos debruçarmos sobre o OGE em concreto, tem mais interesse analisar alguns dos pontos estruturantes em que se baseia a proposta, designadamente a estratégia do executivo para fazer crescer a economia (páginas 7 e 8). É aqui, mais do que no próprio OGE, que reside o fulcro da política económica para os próximos tempos, que poderá, ou não, assegurar o crescimento económico.

A leitura dessa estratégia de crescimento não nos deixa muito animados, pois é simultaneamente demasiado vaga, contraditória e burocrática.

São enunciados dois eixos principais para lançar o crescimento (existe um terceiro, mas não é detalhado). O primeiro é o Aprofundamento da Consolidação Fiscal e Solidificação da Economia, e o segundo é a Reanimação do Sector Produtivo e Diversificação da Economia.

Vamos analisar o primeiro eixo.

Em relação ao Aprofundamento da Consolidação Fiscal, são apontadas duas sub-estratégias: a Melhoria da Qualidade da Despesa Pública e a Reforma Estrutural do Sistema Tributário e Aumento da Base Tributária.

Francamente, a expressão “Qualidade da Despesa Pública” é atractiva, mas por si só não significa nada. É um conceito igual a zero. Tem de ser explanado. A qualidade da despesa pública mede-se em relação às prioridades da política económica e social e, geralmente, os autores consideram que tem por base um sistema fiscal que incentiva o trabalho e o investimento, que promove a equidade, combate a fraude e a evasão fiscal e promove a sustentabilidade ambiental.

Em resumo, antes de se falar em “Qualidade da Despesa Pública”, haveria que definir precisamente os objectivos da política económica e social. Só aferindo a eficiência da relação entre gastos e objectivos se sabe se uma despesa tem qualidade ou não. Assim, estamos perante um chavão daqueles que funcionam bem em sala de aula, mas que não adiantam nada na realidade.

O segundo sub-eixo designa-se Reforma Estrutural do Sistema Tributário e Aumento da Base Tributária. Mais um conjunto de palavras bonitas, que na prática costumam querer dizer aumentar impostos. Portanto, a estratégia de crescimento do governo passa por aumentar impostos.

Há que ser muito claro. Aumentar impostos não faz crescer a economia: aliás, provoca quase sempre uma recessão. “Austerity” (2019), o mais recente estudo publicado sobre o assunto e realizado pelos economistas Alberto Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi, de Harvard (EUA) e de Bocconi (Itália), é cristalino em concluir que a austeridade produz crescimento quando é assente em cortes da despesa, mas que o aumento de impostos conduz a um agravamento da situação. Consequentemente, não vale a pena ter ilusões: aumentos da carga fiscal não promovem o crescimento, não são uma estratégia de lançamento da economia, mas sim de afundamento.

O eixo complementar apresentado nos diapositivos do Ministério das Finanças intitula-se Solidificação da Estabilidade Macroeconómica. É um facto que a estabilidade macroeconómica é uma condição para o crescimento sustentado. As dúvidas surgem no detalhe do que significa essa estabilidade. Em primeiro lugar, fala-se de “Alteração da Estrutura da Dívida Pública”. Tudo depende do que se pretende neste aspecto, se for renegociar a dívida para prazos mais longos e taxas de juro mais baixas, e evitar pagamentos em matérias-primas, seja essa negociação directa, seja indirecta, através de nova emissão de dívida e pagamento antecipado da existente, então é uma estratégia positiva. Convinha, contudo, haver uma explicitação do pretendido, para que os agentes económicos possam formar as suas expectativas de modo racional.

As outras medidas são mais estranhas. Uma é “Descentralização das Finanças Públicas”. Aqui podem existir desideratos políticos, como, por exemplo, entregar parte dos gastos às autarquias ou a organismos independentes. Todavia, em termos estritamente financeiros, a descentralização das finanças públicas tem sempre um efeito de aumento de gastos e maior descontrolo.

Sinceramente, neste momento, o que se precisa é de centralização e controlo das finanças públicas. Precisamente o contrário do que vem exposto. Até as finanças estarem controladas, não faz sentido qualquer descentralização.

Finalmente, o último ponto deste primeiro comentário é aquilo que é chamado “Maior Eficiência das Políticas Monetária e Cambial”. Mais uma vez, seria necessário definir “eficiência” por relação com os objectivos. Temos de saber que objectivos queremos atingir para sabermos se alcançamos ou não maior eficiência.

Neste momento, em termos de política cambial, adoptou-se uma estratégia de liberalização. O kwanza flutua – e desvaloriza-se – à vontade, e isto poderá ser positivo se o país tiver um largo défice comercial. Vejamos um exemplo: se, em resultado da depreciação do kwanza, o salário em Angola baixar em relação ao país B, passará a ser mais barato produzir o bem A em Angola – e, portanto, em vez de importar, Angola passará a exportar esse bem. Assim sendo, em Angola as exportações aumentarão, as importações diminuirão e, portanto, o défice comercial reduzir-se-á. O processo de depreciação do kwanza – e, portanto, de redução do salário e dos custos de produção em Angola – continuará até que o défice comercial de Angola com o tal país B acabe eventualmente por ser eliminado. Por aqui se vê que a flutuação livre do kwanza é positiva, porque aumenta as exportações, embora ao mesmo tempo torne as importações mais caras e diminua o poder de compra dos salários nacionais face ao estrangeiro.

O problema que aqui se coloca é saber se existe um clima empresarial em Angola que permita às empresas aproveitarem a baixa do kwanza para exportar mais, para vender mais ao estrangeiro. É que, caso assim não seja, a desvalorização do kwanza apenas asfixia a economia e as pessoas. É por isso que se tem de adaptar os modelos e as teorias económicas à realidade de cada país. Deixar o câmbio flutuar livremente, sim, se houver capacidade exportadora e facilidade de criação de empresas.

Em último lugar, temos a política monetária. Em Angola, para contrapor à desvalorização do kwanza e às pressões inflacionistas, a política monetária tem sido restritiva, isto é, tem-se tentado limitar o dinheiro que existe em circulação. Ora, isto tem lógica para conter a inflação, mas poderá ter um efeito recessivo. Se nada mais acontecer, o que em economia se designa ceteris paribus, a contracção do dinheiro em circulação é recessiva, não provoca crescimento. Poderá ter um efeito contrário, se o governo conseguir criar confiança nos mercados no sentido de garantir a estabilidade e se lançar em reformas estruturais.

Em suma, manter uma política monetária restritiva por si só não lança crescimento algum, a não ser num contexto de amplas reformas estruturais da economia, que não se vêem nem se adivinham a partir desta apresentação do Ministério das Finanças.

Aliás, este parece ser o erro principal da política económica do governo. Dedica-se aos instrumentos de política económica, utilizando essencialmente mecanismos recessivos, e não promove previamente as condições estruturais para o crescimento: instituições credíveis, liberdade de entrada nos mercados, flexibilidade de preços, justiça célere, impostos baixos, clima social favorável.

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