Incêndios florestais e a Caça ao Rato Monteiro no Kwanza-Sul

Depois de termos atravessado vários quilómetros de terra queimada e outras ainda em chamas, o general sorri, com ar de descrédito, abana a cabeça e pergunta-me: “Sabe qual é a principal causa dos fogos aqui na Quibala?”

“Não sei”, respondo.

“É para caçar ratos. É mais para caçar ratos”, afirma o general Luís Faceira (já na reforma), continuando a abanar a cabeça. No conforto de um veículo todo-o-terreno com ar condicionado, é fácil pensarmos que se trata de uma brincadeira ou anedota. Mas não é.

Ao longo da estrada, aqui e ali, meninos exibem, para venda, o rato monteiro. Este rato chega a ter o tamanho de um coelho, e é um exímio escavador de tocas, debaixo do solo, para seu próprio abrigo. O preço de mercado do rato monteiro varia entre os 2500 e os 3000 kwanzas, dependendo do tamanho.

O general explica que o fogo e as altas temperaturas que se fazem sentir no solo e subsolo devido às queimadas fazem com que os ratos fujam em direcção às zonas de emboscada, onde os humanos os esperam, bem como a todos os outros animais fugitivos, para caçá-los com armadilhas, armas e instrumentos improvisados, como arcos e flechas.

No Kwanza-Sul, os municípios de Amboim, Cela, Mussende e Quibala são apontados por um técnico local como os mais afectados pelos incêndios florestais. O mesmo técnico, que também trabalha para o Ministério da Agricultura, afirma que as pakas, as cabras do mato, os veados, as seixas, os coelhos e os ratos (nas variantes monteiro e puku) têm sido os principais alvos das caçadas através do fogo. Se é verdade que as outras espécies começam a ser mais escassas, os ratos são mais fáceis de encontrar, conforme depoimentos locais.

Um especialista do Ministério da Agricultura revela, sob anonimato, que o impacto dos incêndios florestais no corredor centro-sul de Angola “é alarmante”. A pressão demográfica e de pobreza têm gerado cada vez mais episódios de fogo-posto.

Este especialista distingue desde logo entre queimadas e incêndios florestais: “A queimada tem sido uma prática agro-pastoril ou florestal que utiliza o fogo de forma controlada, para viabilizar a agricultura e remover pastagens. A queimada vem dos nossos antepassados mas sujeitava-se a mecanismos de controlo.”

Por seu lado, o incêndio florestal “é o fogo sem controlo que incide sobre qualquer forma de vegetação, por acção do homem. Em Angola, os incêndios florestais são resultado da má-fé e da negligência. As pessoas estão a queimar grandes extensões de terra para caçar ratos e outros animais. Essas pessoas devem ser responsabilizadas criminalmente”, assevera o especialista.

“Estamos a perder a biodiversidade. Os incêndios empobrecem os solos, com a queima das matérias orgânicas, e tornam-nos vulneráveis às erosões. Esses mesmos solos tornam-se improdutivos, originam menos colheitas e contribuem para o aumento da insegurança alimentar. Também a fauna e a flora estão a desaparecer.”

O rato pode atingir dimensões e valor consideráveis, e é um dos animais procurados nas queimadas.

Ainda de acordo com o mesmo especialista, a perda de grandes extensões florestais dá origem a que haja “menos chuvas”. “Perdemos também os insectos, que contribuem para a polinização das flores para a produção de mel. De igual modo, perdemos a caça grossa e os animais de grande porte, como os elefantes na Quilenda (em Quibala).”

Outros danos

Relevantes são também os danos nas propriedades. “Em Junho passado, estes fogos descontrolados destruíram 44 casas no Waku-Kungo”, denuncia o especialista.

O nosso interlocutor elenca ainda os danos nas linhas de transporte de energia de alta tensão, na queima de postes de eucaliptos para transporte de energia, os danos em cabos de fibra óptica e a destruição parcial de fazendas de produção de fruteiras.

“Em Setembro passado, as incêndios mataram um elefante no Libolo”, exemplifica o especialista, referindo que os danos ultrapassam largamente a informação pública disponível.

Os sobas têm sido apontados como os elementos que validam as queimadas, as quais, dada a anarquia, redundam em incêndios florestais.

Na sua qualidade de fazendeiro na Quibala, o general António Faceira, também já na reforma e irmão de Luís Faceira, explica que os administradores locais já organizaram reuniões com empresários e com os sobas, no intuito de demover as autoridades tradicionais de autorizarem as queimadas.

Este ano, em resultado dos incêndios florestais, António Faceira lamenta a perda de mais de cem hectares de pasto melhorado na sua fazenda.

Explica que, no ano passado, tentou demover a comunidade vizinha de queimar a sua propriedade, mas sem sucesso: “No ano passado, um dos meus trabalhadores avisou-me que o soba de Kissequele e a sua comunidade haviam planificado atear fogo na minha fazenda. Falei com o soba, garanti-lhes alimentos e tudo o mais, para não atearem fogo na minha propriedade. Eu tinha guarda-fogos em redor da minha fazenda. Os aldeães saltaram a cerca e mesmo assim queimaram a minha propriedade.”

Faceira abana a cabeça e lamenta a falta de protecção à propriedade. “Não há seguro que cubra estas perdas. Ninguém aqui sabe nada. Nem a polícia, nem os tribunais, e muito menos os políticos”, assevera.

Afirma que, nos últimos três anos, tem sofrido perdas enormes devido ao fogo-posto. Na Fazenda Boaventurança, na zona da Gravidade, viu serem queimados 18 hectares de bananal e outras frutas em plena produção, assim como foi queimado o sistema de rega. Teve um prejuízo de cinco milhões de dólares. Dos 70 hectares de bananal, tinha uma colheita mensal de 400 toneladas de banana.

Há dois anos, a mesma fazenda registou a queima de 25 hectares de citrinos e mais 12 hectares de bananal, também em plena produção. Este ano lá se foram as goiabas, num total de 12 hectares queimados.

Aos incêndios florestais juntou-se o saque, e a produção de banana foi abandonada, num país em que tanto se fala sobre a aposta na agricultura. Segundo o antigo general e agora fazendeiro, esse incêndio foi intencional e não houve quaisquer consequências. “Todos esses dados foram participados ao Comando da Polícia Nacional no Amboim, e nada foi feito”, afirma o outro sócio e irmão, o antigo general Luís Faceira.

“As queimadas não são proibidas, porque são práticas ancestrais, mas têm de ter autorização e medidas de controlo, para que não se transformem em incêndios florestais”, reitera o especialista que ouvimos. E continua: “O governo tem feito campanhas de sensibilização para mitigar essa prática, mas a nossa população é maioritariamente analfabeta e não entende.”

De forma enfática, Luís Faceira também se refere ao abate descontrolado de árvores por todo o país, para exportação de madeira, como sendo outro factor de grande impacto ambiental na devastação da flora e da fauna.

Medo da tradição

Domingos Joaquim, soba do Bairro Porto Condo, no Mussende, explica como o poder da autoridade tradicional é ignorado quando a população assim o entende: “Já não podemos fazer queimadas como antes, porque agora há muitas fazendas a produzir aqui ao longo do rio. Por isso, não se pode queimar à toa.”

E prossegue, lamentando: “Nós, os sobas locais, proibimos, mas já ninguém nos ouve. Hoje há anarquia. Cada um pega nos fósforos e vai incendiar a mata. Já não conhecemos quem entra na mata para fazer isso.”

Todavia, o soba revela um dado curioso. Na área de Mbola Caxaxi, onde se encontram memoriais do lendário rei Ngola Kiluanji, ninguém se atreve a fazer queimadas sem ordem do soba. Se o fizer, “morre, de acordo com a tradição”.

Domingos Joaquim explica que “o povo tem medo da tradição”, porque esta zona “é muito proibida”.

O especialista do Ministério da Agricultura refere a expectativa alimentada pelo Instituto de Desenvolvimento Florestal (IDF), que rege as florestas, para que se proceda à aprovação do novo Código Penal.

“Nos outros países da região (SADC), o fogo-posto é crime. Aqui, é apenas uma transgressão administrativa, punível com multa por danos à fauna e flora”, afirma o especialista. “O novo Código Penal prevê crimes ambientais e aguardamos pela sua aprovação para termos um instrumento punitivo contra estas práticas”, conclui.

Na ausência de um plano de domínio público, talvez seja aconselhável ao governo inspirar-se na lenda de Ngola Kiluanji, para criar uma nova tradição contra os incêndios florestais em todo o país.

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