Trapalhadas no Concurso para os Tribunais de Relação

Temos acompanhado a evolução do concurso para nomear juízes desembargadores para os Tribunais da Relação de Luanda e de Benguela. Este concurso é importante, pois vai, pela primeira vez na história recente de Angola, colocar a funcionar os Tribunais da Relação. Estes tribunais são aquilo a que se chama um tribunal de segunda instância, e servem, em regra, para apreciar os recursos das decisões tomadas pelos tribunais de comarca ou provinciais. Portanto, já são órgãos de uma solenidade importante, de quem se espera um domínio do Direito adequado e rigoroso.

Contudo, adequado e rigoroso não são adjectivos que possam aplicar-se ao concurso para nomear os juízes deste tribunal. A última deliberação do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) patente num comunicado datado de 5 de Setembro, espanta pela falta de fundamentação legal. Diz esse comunicado que “o Plenário do CSMJ apreciou as reclamações referentes ao resultado do concurso público para Juízes Desembargadores. Após discussão e por maioria, o CSMJ considerou que assiste razão aos reclamantes (…). Assim, o Conselho Superior da Magistratura Judicial analisou e aprovou a lista de Juízes Desembargadores a ingressar nos Tribunais da Relação de Luanda e de Benguela, num total de 68.”

O estranho desta questão é que o número de vagas abertas era de 19 para cada Tribunal da Relação (cfr. artigo n.º 2 da Resolução n.º 12/18 de 19 de Dezembro do Conselho Superior da Magistratura Judicial). Quer isto dizer que, no final do concurso, deveriam ser apurados 38 juízes, e não 68, como agora se anuncia.

Ora, deste modo surgem 30 juízes desembargadores em excesso, para os quais se desconhecem as funções atribuídas.

Algumas clarificações são necessárias para se entender o que está a acontecer. Numa primeira fase, foram admitidos a concurso 129 juízes. De entre esses, foram escolhidos, por meio de critérios subjectivos que na devida altura contestámos, 54 juízes, que reuniam as condições para aceder aos Tribunais da Relação. Desses 54, os 38 melhores subiriam efectivamente às instituições.

Bizarramente, agora surgem não 38, nem 54, mas sim 68 juízes que ingressarão nos Tribunais da Relação. O comentador legal que acompanha estes assuntos fica estupefacto, sem perceber o que se está a passar.

Recapitulemos. Foi aberto um concurso apenas para os Tribunais da Relação de Luanda e de Benguela, como aliás determina a Lei n.º 1/16, de 10 de Fevereiro, nos seus artigos 45.º e 48.º. Esse concurso foi regulamentado, como já referimos, pela Resolução do Conselho Superior da Magistratura n.º 12/18, de 19 de Dezembro, aí se fixando em 19 o número de juízes a promover para cada um dos tribunais. De repente, tudo parece ter mudado, e escolheu-se uma catrefada de juízes.

Isto não faz qualquer sentido. Estes procedimentos devem estar enquadrados por normas legais e regulamentares, e não podem derivar de vontades momentâneas e espontâneas ou soluções ad-hoc para resolver asneiras realizadas pelos decisores. Caso contrário, vive-se num regime de anarquia selvagem.

Há uma lei, há uma resolução (acerca da qual se duvida da legalidade de alguns pontos), e essas devem ser seguidas ou modificadas, se for o caso, e os processos reiniciados. Mudar, aparentemente, as regras do jogo a meio é que não pode ser. Neste momento, passamos a contar com mais juízes desembargadores do que vagas disponíveis.

O que se vai fazer? Abrir mais vagas na Relação de Luanda e Benguela? Ou criar um corpo de juízes suplentes? Esta última solução poderia fazer sentido, mas não está contemplada na lei. Por outro lado, não se pode pensar que estes juízes ficam “na calha” para ocupar novas vagas noutros Tribunais da Relação a serem instalados no futuro. Não pode ser, porque muitos outros juízes não concorreram a Luanda ou a Benguela, porque pensavam apenas concorrer ao Lubango ou a Saurimo. Deste modo, não se pode agora predeterminar o resultado de um concurso futuro.

Alguns poderão defender que estamos perante a imitação do sistema moçambicano. Em Moçambique, o Estatuto dos Magistrados Judiciais encontra-se regulado pelas Leis n.º 7/2009, de 11 de Março, e n.º 3/2011, de 11 de Janeiro. De acordo com esse Estatuto, a promoção a juiz desembargador não é condicionada pela existência de vagas no tribunal superior (artigo 15.º, n.º 1): há uma promoção a juiz desembargadores aplicável aos juízes de direito da classe A com classificação de Bom e três anos de exercício na função (artigo 13.º, n.º 4). Quer isto dizer que a promoção a juiz desembargador não depende de haver lugar no Tribunal da Relação, mas sim de um misto de antiguidade e mérito, anos de serviço e classificação obtida. No caso de não existir vaga nesse Tribunal superior, então a lei moçambicana dispõe que aqueles que tenham sido promovidos a juízes desembargadores continuarão no Tribunal Judicial de Província pelo tempo que se mostrar necessário, apenas julgando casos em segunda instância.

Esta solução poderia ser adoptada em Angola. No entanto, e a questão é muito simples, tal solução precisava de estar prevista na lei nacional e não está.

Um dos principais hábitos que tem de ser tomado a sério em Angola, em especial pelos decisores, é que a lei existe para ser cumprida. O que está na lei é para ser seguido, não se tratando de uma espécie de anúncio comercial para mostrar a estrangeiros imbecis. O hábito de tomar decisões que não têm qualquer fundamento legal, apenas seguindo a vontade do chefe do momento, não é salutar, sobretudo no sector da Justiça, que deveria ser o primeiro a aplicar a lei e não a criar confusão.

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