Novo paradigma na Justiça: o Caso da Recuperação de Activos
Quem imaginaria a visão do todo-poderoso general José António Maria “Zé Maria”, sentado no banco dos réus, a explicar-se sobre o extravio ou não de papéis, que custaram ou não mais de dois milhões de dólares ao Estado angolano. O general Zé Maria diz que o dinheiro é de José Eduardo dos Santos, os papéis pertencem ao ex-presidente e tudo foi feito com autorização presidencial.
Quem imaginaria que o outrora homem forte da comunicação social, o deputado Manuel Rabelais, era afinal um cambista de rua, um kínguila, com um esquema rudimentar que lhe permitiu sacar mais de 100 milhões de dólares do Banco Nacional de Angola para a sua actividade marginal, valor que segundo ele serviu para operações secretas autorizadas pelo então presidente José Eduardo dos Santos.
Quem imaginaria ver o filho-príncipe de José Eduardo dos Santos, Filomeno José dos Santos, sentado no banco dos réus, por um esquema de pilhagem de 1,5 mil milhões de dólares, que se concretizou com o saque de um terço desse valor . Segundo o então governador dessa instituição e actual réu, Valter Filipe, esse dinheiro foi extraído do Banco Nacional de Angola sob autorização presidencial de José Eduardo dos Santos.
Qual brincadeira, temos em curso uma série de julgamentos em que a defesa sustenta sempre que os réus agiram sob ordens presidenciais e, por isso, sejam eles corruptos ou não, a responsabilidade criminal última e as culpas são todas de José Eduardo dos Santos.
Judicialização do País
Nestes três casos, como em muitos outros que se seguirão, o mais extraordinário é a judicialização da vida quotidiana e da política em Angola. Esta é uma das tendências mais interessantes a que se vai assistindo no mundo actual. Tanto a pessoa comum como o político recorrem cada vez mais à lei e aos tribunais, numa tentativa de resolverem os problemas com que se defrontam.
Nas sociedades mais avançadas, muitas das decisões fundamentais deixaram de ser tomadas pelos representantes do povo e passaram para as mãos dos intérpretes da Constituição, que se tornaram uma espécie de oráculos dos novos tempos. Esta prática tem sido defendida por vários teóricos do Direito, entre os quais se destaca Ronald Dworkin. Segundo este teórico, os juízes, quando estejam de boa-fé e tomem decisões coerentes, assegurando o respeito pela Constituição, são os mais importantes garantes da democracia. Na sua óptica, a integridade da Constituição vale mais do que um processo eleitoral, porque garante o tratamento igual de todos os cidadãos, competindo aos magistrados zelar por isso. Desse modo, em países como os Estados Unidos da América, o poder judicial independente tornou-se sinónimo de democracia.
Esta tradição bate agora à porta de Angola. Hoje, em qualquer dia da semana, temos como principais notícias a ocorrência de julgamentos ou acusações por parte da PGR. Há uma legalização/ judicialização da vida política, acredita-se que a lei e a justiça tudo resolverão.
Se este é um caminho válido, devendo nós acreditar na capacidade do Direito e da Justiça para contribuírem para uma sociedade melhor, nem tudo se poderá resolver desta forma. O Direito e a Justiça são elementos fundamentais na estruturação de uma sociedade, mas não são os únicos. Não resolvem os problemas todos.
Direito versus Justiça: a Recuperação de Activos
Temos o exemplo claro da Constituição de 2010, elaborada à medida da então presidência imperial de José Eduardo dos Santos. É a essa mesma Constituição que os actuais réus recorrem para justificar as suas acções julgadas ilícitas. Eles apresentam-se como meros auxiliares de um chefe, e argumentam que apenas cumpriam as ordens de um presidente que detinha todos os poderes e nenhuma responsabilidade criminal (salvo em casos de vagos conceitos de suborno, traição à pátria e crimes definidos pela Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia) durante o exercício do seu mandato. Trata-se de uma situação em que o Direito atropela a Justiça.
Outro exemplo cabal de atropelamento da Justiça pelo Direito, e sobre o qual nos debruçaremos, é o caso da recuperação de activos. Foram produzidas duas leis bem-intencionadas: a Lei n.º 9/18, de 17 de Maio – designada Lei do Repatriamento de Recursos Financeiros e alcunhada de Lei do Repatriamento Voluntário; e a Lei n.º 15/18, de 21 de Novembro, designada Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens.
A Lei do Repatriamento Voluntário contém várias deficiências estruturais que vieram a tornar-se determinantes para o seu falhanço completo. Em primeiro lugar, concede uma amnistia geral a todos os desmandos financeiros ocorridos em Angola. Ora, não se verificando qualquer reestruturação no Estado angolano, nem existindo ainda uma sociedade realmente democrática e transparente, esta amnistia não faz sentido.
A ciência e a técnica fiscais ensinam que este tipo de amnistias tem de ser acompanhado por medidas abrangentes, designadamente de correcção e coacção dos comportamentos violadores da lei. E da ciência política sabemos que as amnistias globais fazem parte de processos de transição acordados entre as várias forças políticas e sociais. Nada disto ocorreu.
A segunda deficiência estrutural da nova lei, e a mais gritante, prende-se com a motivação extralegal. Que motivos poderão levar os detentores de capitais no estrangeiro a repatriá-los para Angola? A amnistia criminal e fiscal? Caso estivesse em curso, quando a lei entrou em vigor, um combate muito efectivo por parte de Angola no sentido de descobrir as fortunas escondidas e punir os seus proprietários, então, por receio de serem apanhados e punidos, os prevaricadores poderiam levar a sério a amnistia e aproveitá-la para evitarem futuros processos criminais. Porém, não havendo mecanismos significativos de coerção, ninguém se sentiu verdadeiramente motivado a repatriar capitais.
Por outro lado, a Lei do Repatriamento Coercivo é uma norma pejada de boas intenções, mas muito confusa em termos técnicos, pois mistura três temas: o repatriamento coercivo (artigos 1.º e 3.º) , a perda alargada de bens (artigos e 1.º e 4.º) e o Serviço Nacional de Recuperação de Activos (artigos 12.º e 13.º).
O primeiro aspecto a referir é que a lei afasta a possibilidade do confisco objectivo. Apenas haverá repatriamento ou perda de bens após condenação em processo penal. São, portanto, excluídas as acções cíveis e as situações de recuperação de activos sem condenação.
Ademais, a lei, em vez de se basear na anterior legislação que já tipificava de forma generosa, mas rigorosa, os crimes sujeitos às regras de branqueamento, cria uma nova categoria: “os crimes de natureza patrimonial em que o Estado tenha sido lesado” (artigo 2.º). Esta categoria é demasiado vaga e possivelmente inconstitucional.
Como tem escrito insistentemente o juiz do Supremo Tribunal norte-americano Neil Gorsuch, “uma lei vaga não é lei nenhuma”. Os crimes a que as leis se aplicam têm de estar rigorosamente tipificados, e não descritos de uma forma genérica.
Também de redacção muito duvidosa é o artigo 3.º, que estabelece que o repatriamento coercivo incide sobre activos financeiros, e mais nenhuns. Esta norma é redutora, pois deixa de fora toda a outra panóplia de activos (ou valores, como preferirmos designá-los). Por activos financeiros entende-se aqueles que são negociados em mercados financeiros, os quais se definem como:
“activos intangíveis (isto é, que não têm existência física) que conferem ao respectivo detentor – o investidor – o direito ao recebimento de benefícios em data futura, sendo a responsabilidade pelo seu pagamento da entidade que procedeu à sua emissão – entidade emitente”.
Assim, acções ou obrigações podem ser repatriadas, mas não a propriedade de bens imóveis… É evidente que o bem imóvel não pode ser repatriado. Mas a sua propriedade pode, como também pode ser compulsivamente colocado à venda, para que o provento dessa venda seja repatriado, como já explicitámos acima. Nestes termos, o artigo 3.º é demasiado redutor e sem sentido.
A esta figura do repatriamento coercivo, a lei acrescenta, a partir do artigo 4.º, o instituto da perda alargada de bens, inspirado na lei portuguesa. A perda alargada é um instituto que permite ao tribunal condenar um arguido a ficar sem os bens que não sejam congruentes com o seu rendimento lícito (artigos 4.º e 5.º). Quer isto dizer que se uma pessoa detiver determinado património, mas não consiga explicar onde arranjou dinheiro para o comprar, pode perder esse património. Este mecanismo pode ser eficaz, uma vez que, de algum modo, inverte o ónus da prova (artigo 8.º), passando a ser o arguido a ter de fazer prova da aquisição lícita dos bens. Neste âmbito, o Ministério Público pode pedir o arresto de bens (artigo 9.º). E este arresto é decretado por juiz, desde que haja indício de crime, não se aplicando os requisitos tradicionais para o arresto.
Embora pouco detalhadas e exigindo mais pormenor, estas normas sobre a perda alargada de bens podem ser um caminho promissor para a recuperação efectiva de bens. Muito provavelmente, é na exploração dos artigos 4.º a 11.º desta Lei – perda de bens incongruentes, possibilidade de arresto com poucas exigências legais – que estará o caminho para um mais eficaz combate à corrupção. No entanto, há que alertar para os problemas constitucionais levantados pela inversão do ónus da prova, bem como para a falta de clareza técnica na elaboração desta lei.
Finalmente, nos seus artigos 12.º e 13.º, esta lei cria o Serviço Nacional de Recuperação de Activos, integrado na Procuradoria-Geral da República. Entre as suas principais atribuições, constam o rastreamento e congelamento dos bens e a cooperação internacional (artigo 13.º, n.º 1 a) e b). Parece tratar-se de um embrião de organismo para o eficiente combate à corrupção, mas ainda muito tímido, uma vez que a lei é demasiado simplista na descrição deste Serviço. Não se percebe se tem competência para decretar directamente os congelamentos nos termos das leis do branqueamento de capitais acima descritas. Também não se sabe se tem competência para, em qualquer processo, ir a juízo pedir o arresto de bens.
Quando a Justiça não Obedece à Lei
No entanto, o que se tem verificado é que a suposta recuperação de activos, a ter acontecido (a informação não é muito clara), não ocorreu de acordo com nenhuma destas leis, mas por meio de uns supostos acordos extrajudiciais de legalidade duvidosa, ou para os quais não se enuncia claramente o fundamento legal. O acordo extrajudicial entre a PGR e o suíço-angolano Jean-Claude Bastos de Morais, que havia feito do dinheiro do Fundo Soberano de Angola (FSDEA) sua propriedade privada, é prova disso mesmo. O processo contra o então presidente do FSDEA, José Filomeno dos Santos, sobre o mesmo caso, continua e mal explicado. Não se percebe por que razão como, tendo os dois sido as duas faces da mesma moeda da corrupção, se isenta Jean-Claude Bastos de Morais de qualquer responsabilidade criminal e se mantém o processo contra José Filomeno dos Santos. Face à dogmática penal angolana, isto não é possível.
Vejamos então: temos leis que não são aplicadas, e temos aplicações que não resultam de leis. Por aqui se vê como é difícil em entroncar o Direito com a realidade e como é necessário ter sempre uma visão mais ampla da realidade.
Basicamente, a alta corrupção em Angola é um problema político a que o Direito e a sociedade em geral se devem dirigir de forma conjugada. Primeiro, é fundamental a decisão política de submeter todos os grandes cabecilhas da corrupção a julgamento. Esta decisão deve sujeitar-se às três finalidades primordiais do Direito Penal: punição, prevenção específica e prevenção geral.
Tendo a sociedade sido corrompida e tornada corrupta, não é possível começar por punir todos, mas é recomendável determinar quem são os mais importantes fautores da grande corrupção em Angola, incluindo os beneficiários estrangeiros.
Segundo, o executivo deve ser libertado dos cabecilhas da corrupção que ainda lá permanecem. Não pode haver uma mera “dança de cadeiras” na fruição das impunidades e da manutenção do statu quo. Nenhum membro do governo deve estar envolvido nos maiores esquemas corruptos do passado. Essa mensagem tem de ser clara para a sociedade.
Finalmente, devem ser publicitadas as listas de bens arrestados e/ou perdidos a favor do Estado, criando-se um espaço de transparência e de participação dos cidadãos na denúncia de mais casos e de moralização públicas.
Eis a visão de alguém que não é jurista, mas que acredita que só uma sociedade justa trará democracia e progresso para Angola: se queremos livrar o país da praga da corrupção e fazê-lo andar para a frente, proporcionando à população a vida que merece, precisamos de uma abordagem tripartida, que englobe a política, o Direito e a sociedade civil.
* Comunicação apresentada na Conferência Nacional dos Advogados de Angola, sob o lema “A Advocacia e a Reforma do Estado”, em Moçâmedes, a 20 de Setembro de 2019.