Lava-Jato em Angola

Pensar Lava-Jato em Angola é pensar em Odebrecht. Sem dúvida, se fizermos um exercício de associação livre de palavras à famosa investigação policial brasileira, a que nos vem à cabeça é “Odebrecht”. No entanto, o caso Lava-Jato tem um impacto muito maior em Angola do que aquele que resulta das relações espúrias então estabelecidas entre a construtora brasileira e o poder político angolano.

Em 2017, apresentei um requerimento à Procuradoria-Geral da República para agir sobre o acordo chegado entre a Odebrecht, uma das principais empresas visadas da Lava-Jato, e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América. Segundo o acordo, a Odebrecht reconhecia-se culpada de ter corrompido dirigentes angolanos, de 2006 a 2013, com um montante total de 50 milhões de dólares para obter contratos e benefícios no valor de 261 milhões de dólares.

A operação Lava-Jato, em primeiro lugar, poderia servir de modelo sistémico para a actuação anticorrupção em Angola. Em segundo lugar, demonstra as limitações que um combate à corrupção meramente judicializado apresenta e, sobretudo, as ameaças que representa para a independência do poder judicial. Em terceiro lugar, o evidente: em termos factuais, existe muito da Lava-Jato que entronca em Angola.

Comecemos por abordar a primeira questão. Em Angola, embora a retórica presidencial contra a corrupção seja corajosa, geral e abrangente, a prática desse combate não tem sido sistemática, obedecendo a um plano estratégico predefinido. O casuísmo tem imperado. Surge um caso aqui, um caso ali. Um acaba em acordo (Jean-Claude Bastos de Morais), outro segue para julgamento e resulta numa condenação pesada (Augusto Tomás), não se percebendo os critérios que justificaram um desenlace e o outro. Parece tudo funcionar um pouco ao acaso.

A Lava-Jato — que surgiu de uma investigação casual, precisamente a um lava-jato, isto é, a uma estação de lavagem de automóveis — rapidamente assumiu os foros de uma operação centralizada, sistemática e sofisticada, assente numa lei que previa a possibilidade de acordos com potenciais criminosos. Depois de se terem apercebido da magnitude da operação Lava-Jato, as autoridades actuaram depressa, criando uma uma task-force (força de acção) focada e orientada exclusivamente para o caso. Essa task force conduziu as investigações de forma metódica e determinada, com um grupo de polícias federais, procuradores e juízes dedicados ao caso. Não é o que se passa em Angola, onde não existe qualquer especialização desta envergadura para o combate à corrupção.

Assim, este é um primeiro ponto a sublinhar: a necessidade de existir uma task force em Angola que aborde de forma sistemática as questões da corrupção.

Naturalmente, este primeiro ponto entronca no segundo. Ontem, a maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal de Justiça do Brasil decidiu a favor da tese segundo a qual o direito de defesa, assente no princípio do contraditório, deve ser respeitado. Esta tese contraria a prática de vários julgamentos da Lava-Jato, em que os delatados não tiveram a oportunidade de se defender das acusações dos delatores premiados, porque as alegações finais foram simultâneas. Essa decisão pode levar à anulação de dezenas de sentenças de condenação assinadas pelo juiz Sérgio Moro.

Como se tornou público mais recentemente, um dos principais membros da equipa que investigou, instruiu e julgou a Lava-Jato, o juiz Sérgio Moro, tem sido acusado de parcialidade e de confundir os planos político e judicial. Esta acusação divide-se em dois aspectos. Enquanto juiz, Moro não terá mantido a reserva e imparcialidade exigíveis a um magistrado judicial, actuando muitas vezes como coordenador da acusação. Esse não é definitivamente o papel do juiz. O juiz é o equilíbrio, a ponderação, a salvaguarda dos direitos individuais, não o justicialismo, por mais que este seja tentador.

Depois, Moro acabou como ministro da Justiça do governo Bolsonaro, indiciando um vaivém entre política e justiça demasiado fluido. Esta tentação de tornar os juízes em políticos, de achar que eles vão resolver aquilo que os políticos não resolveram é muito perigosa. A Lava-Jato gerou Bolsonaro, que não parece ser o exemplo do presidente que o Brasil necessita, para ser parco nas palavras. Mas não é exemplo único. Em Itália, a famosa operação “Mãos Limpas”, que decorreu nos anos 80, também teve como resultado político a ascensão do magnata bunga-bunga Sílvio Berslusconi ao poder, o que garantiu a Itália um retrocesso de que ainda hoje não se conseguiu libertar.

Isto deve servir, de igual modo, de lição para Angola. O combate à corrupção tem de ser um objectivo político, dirigido por políticos, e não “raptado” por juízes. A intervenção do poder judicial só deve acontecer nos termos estritos da lei e com uma função de equilíbrio e imparcialidade. Portanto, a task force a constituir em Angola deve ser originada no poder executivo, designadamente na Polícia e nos serviços de inteligência, contando com a complementaridade óbvia do procurador-geral da República. Os juízes devem permanecer de fora, só aparecendo para julgar como entidades independentes. Os juízes não têm de combater a corrupção, mas apenas e só julgar os factos que lhes são apresentados pelas autoridades policiais e judiciárias.

Finalmente, temos o terceiro ponto, que é o da imensidão de factos que surgiram no âmbito das investigações Lava-Jato que dizem respeito a Angola. Mencionamos apenas um, já provado em juízo nos Estados Unidos. Correu termos no Tribunal do Distrito Leste de Nova Iorque, Estados Unidos da América, uma acção proposta contra a sociedade comercial Odebrecht pelo Ministério da Justiça dos EUA. Esse processo tinha o número 16-643 (RJD). Na folha 17, ponto 47, o Departamento de Justiça norte-americano alegava que possuía provas suficientes de que, entre 2006 e 2013, a Odebrecht corrompera governantes angolanos com, pelo menos, 50 milhões de dólares, com o objectivo de obter benefícios no valor de 261 milhões de dólares. Entretanto, as partes nesse processo chegaram a um acordo (Plea Agreement). Por via desse acordo, a Odebrecht reconheceu-se culpada das acusações que lhe eram feitas, designadamente as referentes a Angola (conferir B-16, pontos 46 e 47 do acordo). Assim, tornava-se claro e evidente que havia provas bastantes da corrupção da Odebrecht em Angola. Nestes termos, deveriam as autoridades angolanas solicitar às autoridades norte-Americanas todos os elementos existentes que lhes permitissem perseguir criminalmente em Angola os governantes corrompidos pela Odebrecht.

Tendo tornado estes factos públicos, enviei uma missiva ao então ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira, e ao então procurador-geral da República, general João Maria Moreira de Sousa, apelando a que o tema fosse objecto de investigação. Isto passou-se em Janeiro de 2017. Não tenho conhecimento de qualquer iniciativa por parte dos governantes.

Este fio de investigação, que já foi deslindado, deverá ser o alvo das investigações sobre as ligações da Lava-Jato em Angola. Daqui surgirão muitos e muitos factos, aliás complementados pelo hilariante depoimento de Emílio Odebrecht na operação Lava-Jacto, no qual este alegava ter sido ele a ensinar os angolanos a utilizarem a retrete!

Como se vê, não falta material de investigação para que as autoridades angolanas desmontem algumas das redes de corrupção que tanto prejudicam o país, condenando-o à miséria. Com real vontade política, escolhendo-se os melhores e mais sérios investigadores, montando-se uma operação policial bem estruturada e eficiente, teremos finalmente processos judiciais dignos desse nome, que caberá aos tribunais julgar.

*Comunicação apresentada na conferência “Corrupção: Desafios e diálogos interdisciplinares. A experiência do caso Lava-Jacto”, organizada pela Universidade Católica de Angola a 27 de Setembro de 2019.

Comentários