Imunidades e Segredo de Justiça: os Novos Desafios

O Direito, por definição, não é o instrumento principal para resolver as grandes questões com que se defronta uma sociedade: é na Política que devemos encontrar as respostas últimas ao sentido que se pretende dar a um país. Daqui não deriva que seja despiciendo conhecermos as regras jurídicas e percebermos como nos podem ajudar a trabalhar para uma sociedade melhor.

Em Angola, vive-se uma época de anunciada transição, em que os assuntos judiciais têm assumido uma preponderância especial. Isso é bom. É extremamente positivo quando o confronto não se dá com armas mortíferas nos campos de batalha, e passa para a sala do tribunal; é um sinónimo de pacificação muito apreciável e, nesse sentido, devemos sublinhar esse avanço.

Nesse novo e civilizado “campo de batalha” que são os tribunais têm surgido nos últimos tempos dois temas que geram forte contenda e desacordo: a imunidade presidencial e o segredo de justiça. Vamos alinhar algumas ideias sobre os dois temas.

Comecemos pela imunidade presidencial. A Constituição (CRA), no seu artigo 127.º, n.º 1, estabelece que: “O Presidente da República não é responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela presente Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia.” O n.º 2 do mesmo preceito clarifica que: “A condenação implica a destituição do cargo e a impossibilidade de candidatura para outro mandato.”

Muitos juristas distintos deduzem daqui que a pessoa que exerce a função de presidente da República fica para sempre imune e será vitaliciamente irresponsável pelos actos que pratique enquanto mais alto magistrado na Nação. No caso concreto do antigo presidente José Eduardo dos Santos, atribuem-lhe uma imunidade vitalícia por todos os actos praticados enquanto presidente da República, entre os anos de 1979 e 2017.

Não concordamos com a opinião desses doutos causídicos, e por várias razões. Consideramos que, depois de cessar o mandato, qualquer pessoa que tenha sido presidente da República já não goza das imunidades que tinha enquanto ocupava o cargo, passando a reger-se pelo estatuto de antigo presidente da República, mesmo em relação a factos praticados quando era presidente da República.

Comecemos por analisar a letra da norma. Vê-se que é uma norma redigida para um presidente em exercício, distinguido entre actos normais, que não são sindicáveis, e actos que constituam suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia. Caso esta última situação se verifique, um dos resultados da condenação é a perda de mandato presidencial… Ora, se a norma tivesse sido redigida a pensar em antigos presidentes da República, não preveria como consequência a perda de mandato, pois este já não existiria. Por este detalhe, vê-se perfeitamente que estamos perante uma norma que apenas se aplica ao presidente da República em exercício.

Contudo, além da letra da lei, existe um outro argumento de carácter teleológico, que é o mais importante. A imunidade existe para permitir o livre exercício da função. É uma imunidade funcional, não é uma imunidade pessoal.

Imunidades pessoais serão típicas de regimes feudais, em que determinadas pessoas se arrogam com mais valor e direitos do que outras: o nobre feudal tinha mais direitos e imunidades do que o povo. Para acabar com isso, aconteceu a Revolução Francesa. Numa Constituição republicana, não há lugar a qualquer distinção pessoal. O presidente da República é imune enquanto está no exercício das suas funções, para não ser incomodado e poder decidir. Terminado o seu mandato, deixando de exercer as suas funções, deixa também de gozar das imunidades presidenciais, podendo ser sindicado pelos actos que possa ter praticado. Na realidade, imunidade não é sinónimo de amnistia, o que seria o caso se considerássemos a sua extensão vitalícia.

Consequentemente, é muito claro no caso do antigo presidente José Eduardo dos Santos que as imunidades de que ele goza quanto a factos praticados no decurso do seu mandato são as que a lei lhe atribui presentemente como antigo presidente, não detendo qualquer privilégio vitalício.

Outro tema que vem surgindo é o do segredo de justiça. A violação do segredo de justiça é um tema candente, sobretudo nesta época de informação instantânea e rapidamente disseminada pelas redes sociais. O segredo de justiça tem duas funções: proteger a investigação, não alertando os eventuais suspeitos do decorrer dos inquéritos policiais, e salvaguardar a reputação desses mesmos suspeitos, não espalhando indícios ténues ou não comprovados da prática de crimes, simultaneamente preservando o princípio da presunção de inocência.

A Constituição remete para a lei ordinária a definição do segredo de justiça (artigo 29, n.º 3 da CRA). A norma legislativa com que deparamos sobre o tema é o artigo 70.º do Código do Processo Penal. Torna-se evidente, a partir da leitura desta norma, que a protecção do segredo de justiça é muito mitigada. Na verdade, só estão obrigados ao mesmo os magistrados que dirijam a instrução e os funcionários que nela participem, estendendo-se à defesa após esta tomar conhecimento do processo. O segredo de justiça só cessa com o Despacho de Pronúncia.

A questão é complexa, pois existe um desfasamento entre a proibição e a divulgação, isto é, quem está proibido expressamente de violar o segredo de justiça são os magistrados, os funcionários, os membros da defesa e o assistente. Para além deste núcleo restrito de pessoas, não há obrigação de guardar segredo de justiça em termos legais. Outras pessoas, como jornalistas, comentaristas, etc., podem divulgar casos sujeitos a segredo de justiça. Não estão proibidos por lei.

Poder-se-ia argumentar que o artigo 40.º, n.º 3 da CRA limita a liberdade de terceiros em divulgar temas sujeitos a segredo de justiça. Na realidade, esta norma constitucional dispõe que: “A liberdade de expressão e a liberdade de informação têm como limites o (…) o segredo de justiça (…) nos termos regulados por lei.”

Como se vê, a norma constitucional contém o limite da limitação. A liberdade de informação está limitada pelo segredo de justiça, mas essa limitação deve estar regulada por lei. Acontece que não está: quer a Lei de Imprensa (Lei n.º 1/17, de 23 de Janeiro), quer o Estatuto do Jornalista (Lei n.º 5/17, de 23 de Janeiro) apenas contêm disposições determinando que os jornalistas não têm direito de acesso às fontes de informação protegidas pelo segredo de justiça, mas, não reconhecendo esse direito, também não proíbem o acesso a essas fontes ou o uso delas.

Nestes termos, é claro que qualquer cidadão que não seja parte de um processo judicial (magistrado, advogado, arguido, funcionário) não está sujeito aos ditames do segredo de justiça e poderá, caso sinta que há interesse, proceder à sua divulgação.

Aqui ficam, assim, umas singelas achegas sobre a questão da imunidade e do segredo de justiça, que não pretendem encerrar o assunto, mas, pelo contrário, lançá-lo em escrutínio e discussão pública esclarecida.

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