Pobres de cabinda com Mais de 100 Milhões de Dólares

Em Cabinda, um projecto lançado pelo Governo, com o apoio do Banco Africano de Desenvolvimento, pretende financiar o relançamento do sector agrícola em Cabinda e combater a pobreza através da agricultura familiar. Para o efeito, prevê-se a concessão de crédito no valor médio de 100 dólares por família. Com semelhantes valores, o projecto mais parece lutar contra os pobres, e não contra a pobreza.

Muito se tem falado sobre a diversificação da economia, a atracção de investimento estrangeiro e a revitalização da agricultura no país. Em Janeiro de 2018, o governo estabeleceu um acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) para financiar um projecto de relançamento do sector agrícola em Cabinda, no valor total de 123 milhões de dólares. Desse valor, o governo disponibiliza uma contrapartida de 20 milhões de dólares.

Aqui temos, portanto, um caso ilustrativo de investimento estrangeiro destinado a fomentar a agricultura familiar, num período de quatro anos, com o empenho do governo. Porém, transcorridos 18 meses, o projecto está envolto em controvérsia. A taxa de execução não ultrapassa os oito por cento, quando até ao fim do ano metade das actividades programadas já deveria estar concretizada, conforme relatório de acompanhamento do Banco Africano de Desenvolvimento.

Em vez de ajudar a agricultura da região, denunciam vários especialistas, este investimento veio apenas “abrandar” o programa de relançamento das culturas do café, do cacau e dos palmares.

Porquê?

Em primeiro lugar, o projecto foi concebido na perspectiva da “mamadeira” habitual. Cerca de 80 por cento do valor total de investimento –84,3 milhões de dólares – devem, de acordo com esse projecto, ser gastos em obras e infra-estruturas. As consultorias absorvem 11,3 milhões de dólares, enquanto as aquisições de equipamentos se cifram em 5,8 milhões de dólares. Como principal consultora, contratou-se a empresa espanhola Globaltech para a coordenação e gestão dos fundos disponibilizados pelo BAD e actividades inerentes.

Finalmente, apenas cinco milhões de dólares servem para a concessão de créditos ao sector agrícola familiar.

“O projecto prevê enquadrar 50 mil famílias. Assim, caberá a cada família, em média, apenas um crédito de 100 dólares. Como será possível alterar-se o quadro de pobreza com estes valores?”, questiona um especialista do governo ligado ao projecto.

Em segundo lugar, conforme os documentos do projecto em nossa posse, não estão previstas metas de produção, definição de culturas principais, sua localização por município e seu destino final.

Em terceiro lugar, a burocracia estabelecida para a gestão do projecto tem-se afirmado como um factor de estrangulamento para a sua implementação.

Finalmente, a 24 de Julho, o presidente João Lourenço demitiu o ministro da Agricultura e Florestas, Marcos Nhunga, cuja gestão do sector era péssima. No entanto, no mesmo dia, nomeou-o para governar a província de Cabinda. Esse é um dos grandes riscos da dança das cadeiras ao nível do governo, que promove a rotação de figuras incompetentes e nefastas à boa governação. Com a figura do novo governador, o que ganha Cabinda?

O coordenador do projecto, Benjamin Castello, justifica o atraso de “cerca de oito meses na obtenção de vistos de trabalho para os consultores expatriados e na disponibilização da contribuição do governo”.

De acordo com este gestor, o Ministério da Agricultura e Florestas (MINAGRIF) iniciou em Maio de 2018, com recurso a fundos próprios, a instalação de quatro viveiros com mais de um milhão de mudas de culturas comerciais (café, cacau e palmar)”.

Sobre a construção de infra-estruturas, prevê a recuperação do tempo perdido no primeiro semestre de 2020, após acertos com o BAD sobre a contratação de consultorias.

Consultorias

As desinteligências iniciais na implementação do projecto tiveram, de certo modo, a ver com a contratação de dois consultores aposentados, após mais de 40 anos de serviço ao MINAGRIF e que, segundo os funcionários locais, tinham poderes decisórios. Trata-se dos técnicos agrários João Martins, de 75 anos, e Fernando Manuel de Sousa Pereira, outro septuagenário.

Esses dois consultores passaram a ganhar, repartidos equitativamente, 23 milhões de kwanzas anuais. Esse salário corresponde a metade do que é auferido pelo total de 108 trabalhadores dos quatro viveiros que sustentam o projecto.

Recuemos a 1 de Março de 2017. Os dois consultores subscreveram uma carta dirigida a Marcos Nhunga propondo que as suas fazendas no Bengo (Martins) e Kwanza-Sul (Pereira) passassem a produzir e a vender ao Estado mudas de culturas florestais, industriais (café, cacau e palmar), entre outras. A dupla propunha também a gestão dos viveiros em posse do MINAGRIF.

O ex-ministro da Agricultura e actual governador de Cabinda, Marcos Nhunga.

Mais estranho ainda, solicitavam também a gestão dos pagamentos das taxas de reflorestamento, feitos pelos madeireiros, “assim como os subsídios previstos para o fomento das culturas”, não especificadas na carta.

Com esperteza, Marcos Nhunga não respondeu directamente à carta, mas “T.C.” [tomou conhecimento], a 10 de Março de 2017, e convocou os directores do Instituto de Desenvolvimento Florestal (IDF) e INCA para “orientações superiores”.

A 18 de Novembro de 2017, Fernando Manuel de Sousa Pereira e João Martins viajaram para o Brasil, como empresários do café, a convite do MINAGRIF, para aquisição de conhecimentos sobre o sector.

Bons mais velhos

O coordenador do projecto contrapõe, e descreve como os “dois mais velhos levaram a sua rica experiência em matéria de condução de viveiros de culturas comerciais”.

“Um deles até foi chefe da Estação Experimental de Café de Amboim (Gabela/Kwanza-Sul), no tempo colonial, e director do INCA no pós-independência”, argumenta Benjamin Castello.

Entre a promiscuidade e a “salvação”

Outra das controvérsias do projecto assenta na modalidade de prestação de serviço acordado com o Destacamento de Construção de Estradas e Pontes da Casa de Segurança do Presidente da República.

Esse Destacamento remeteu ao projecto, a 24 de Fevereiro passado, a proposta “para os trabalhos de desmatação e terraplanagem nos quatro viveiros existente[s] na província”. Colocou à disposição nove trabalhadores e cinco máquinas para a realização do referido trabalho.

Com um valor total de 7,71 milhões de kwanzas, o referido Destacamento solicitou antecipadamente, ao projecto financiado pelo BAD, os referidos fundos para a reparação dos seus equipamentos e aquisição de peças em falta. Para além desse montante, exigiu também 90 mil litros de gasóleo para a operação e 733 mil kwanzas destinados à alimentação dos nove trabalhadores. A proposta não especificava a duração do contrato.

A 12 de Março passado, o coordenador do projecto, Benjamin Castello, ordenou o pagamento da proposta do Destacamento “com a maior celeridade”.

“Graças à nossa intervenção, fomos dando o combustível de forma escalonada para avaliar o seu grau de desempenho. Os madeireiros poderiam ter feito esse trabalho com eficácia, menos custos e racionalização de meios”, explica um funcionário local do projecto.

Em 12 dias de trabalhos na comuna de Tando Zinze, no município de Buco-Zau, segundo um relatório em nossa posse, o destacamento apenas conseguiu desmatar três hectares, com um consumo médio de 625 litros de gasóleo por dia. Já no Massabi, de três hectares, foi declarado um consumo de 250 mil litros de gasóleo para o mesmo período.

Segundo Benjamin Castelo, havia a necessidade “inadiável” de preparar 50 hectares para acomodar os viveiros de mudas de palmar antes do início da estação seca, e as facturas pró-forma apresentadas pelas empresas locais eram “insustentáveis” para o orçamento do projecto.
Segundo este interlocutor, após ter tomado conhecimento da presença, em Cabinda, do Destacamento da Casa de Segurança e de Brigadas do Instituto Nacional de Estradas (INEA), que se encontravam inoperacionais, a coordenação do projecto contactou-os. Benjamin Castello diz que o acordo com o referido destacamento era “dez vezes mais barato” do que a contratação de uma das empresas que concorreram para a realização da obra.

Fazendas de chefes

Como parte desse processo de mando, os consultores determinaram a importação de 500 mil sementes pré-germinadas de palmar da Costa Rica. O INCA já tinha acordos prévios firmados com instituições de investigação e produção de sementes de Malásia, como o Malasya Palm Oil Board, que também formou alguns quadros do instituto em palmar (palmeiras para fabrico de óleo de palma). Este país é o segundo maior produtor mundial de óleo de palma. Um dos consultores, Sousa Pereira, na sua qualidade de empresário importava e vendia sementes de palmar provenientes da Costa Rica, de acordo com técnicos do projecto.

Vários reclamantes acusam os consultores de terem impedido a entrega directa das mudas de palmar aos camponeses, no início da época das chuvas, tendo preferido transplantá-las para duas fazendas privadas.

A Fazenda Maria Manuela, na comuna de Tando Zinze, município sede de Cabinda, pertence ao ex-director provincial da Agricultura, João Tati Luemba. A segunda fazenda, localizada na comuna do Massabi, é aparentemente do coronel Comba, chefe da Brigada da Casa de Segurança e responsável máximo local do Destacamento encarregado de fazer a desmatação do projecto ora investigado.

Benjamin Castello defende a transferência das mudas para as referidas fazendas “no âmbito da promoção da parceria público-privada constante nos termos de referência do projecto”. “O projecto prevê o maior envolvimento do sector privado na prestação de serviços à agricultura familiar”, afirma.

Segundo o coordenador do projecto, o acordo prevê que, em troca da cedência dos seus espaços, as fazendas se tornem produtoras de mudas de culturas comerciais.

“No princípio da época chuvosa recuperaremos as mudas para posterior distribuição aos agricultores familiares. Os custos operacionais da sua manutenção [mudas] nestas duas fazendas são da responsabilidade do projecto. Em vez de se pagar em dinheiro, iremos compensá-los com mudas de palmar”, explica.

“O projecto solicitou os préstimos destes dois fazendeiros que, prontamente, se predispuseram a participar na ‘salvação’ do perigo iminente que se vislumbrava, para as mudas de palmar, com a chegada de cacimbo”, salienta.

O coordenador do projecto caracteriza os técnicos do INCA/Cabinda como inexperientes na criação dos pré-viveiros e viveiros de mudas de palmar, afirmando que estes não cumpriram com os procedimentos técnicos de condução dos pré-viveiros (2 meses) e viveiros (10 meses), perfazendo 12 meses, antes da sua distribuição e plantação definitiva.

O mais extraordinário é que as fazendas estejam a cobrar ao Estado pelo desvio realizado e por serviços não prestados conforme várias facturas a que tivemos acesso.

Há também a denúncia do desvio de um lote de oito mil sementes da variedade de palmar Amazon (o híbrido mais valioso e de melhor qualidade), que nunca chegou a Cabinda. Essas oito mil sementes equivalem a uma plantação de 23 hectares.
“Estou à frente deste projecto desde 20 de Agosto de 2018. Ninguém me participou o desaparecimento de qualquer lote de sementes de palmar. Também não encontrei nenhum lote de sementes. Encontrei apenas as mudas de palmar já com quatro meses de idade”, revela Benjamin Castello.

Nas constatações da missão de apoio do BAD, assinadas solidariamente com o governo, verificou-se que a taxa de desembolso real do projecto é de 1,85%. “No entanto, no contrato assinado, esta taxa cai para 0,59% (apenas pagamento de salários).”

Estes são os números “após um ano de implementação [do projecto] e a três anos para a data de encerramento”, refere o documento.

Estamos perante um daqueles projectos que merecem um escrutínio cerrado pelos sectores críticos da sociedade. Se há dinheiro para combater a pobreza, então que o mesmo seja usado de forma racional e competente para minorar o aliviar a miséria da maioria dos cabindenses.

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