Lunda-Norte: o Horror da Violência Sistemática

A província da Lunda-Norte continua a ser palco de casos de violência sistemática e inconcebível por parte de agentes policiais, militares e forças privadas de segurança.

Vários têm sido os esforços das entidades envolvidas com vista à redução de tais abusos, incluindo o provimento de queixas. Essas medidas têm sido insuficientes para conter a atitude de muitos agentes do Estado, que encaram as Lundas como um autêntico faroeste, sem ordem nem leis, onde o uso da bala, da farda e da violência ditam as regras de jogo.

O Maka Angola continuará a dar voz às vítimas e resume, por ordem cronológica decrescente, quatro casos por nós investigados, ocorridos entre Abril e Julho deste ano.

No primeiro caso, o camponês Tangere Cassoca é surpreendido por dois comandos das Forças Armadas (FAA) enquanto tomava banho, os quais o espancam com paus e catanadas nas nádegas.

No segundo caso, Tito Njita é brutalmente espancado por agentes da Polícia Nacional, por ter sido encontrado a tomar o pequeno-almoço, na sala do seu primo, sem o bilhete de identidade.

Já no terceiro, um comandante militar confisca um telefone a Kuzuela Charles, pelo facto de este “falar muito ao telefone”, assesta-lhe várias mocas nas nádegas, fractura-lhe o braço, paga a uma curandeira para o tratar e ainda exige que, depois de recuperar, a vítima garimpe diamantes para si.

Finalmente, o quarto caso é um grito por justiça de pais cujos filhos, incluindo Júlia Pinto, de 10 anos, foram mortos por um guarda de uma empresa privada de segurança, a DSL, e por um comando. Depois do crime, os pais receberam a habitual lista de grades de cerveja, coxas de frango e fuba para realizarem os óbitos. Da justiça, não ouvem sequer falar.

Tangere Cassoca: banho dá porrada

Tangere Cassoca, de 35 anos, banhava-se no Rio Tximuamua, por volta das 15 horas, após mais uma jornada laboral na sua lavra e de queima de carvão nas proximidades do bairro Camarianga, na sede do município do Cuango, com o mesmo nome.

Tangere Cassoca

Dois comandos das FAA e um terceiro homem à paisana surpreenderam-no disparando vários tiros em sua direcção. “Perguntaram-me o que fazia. Expliquei-lhes que estava a tomar banho e que sou camponês. Eles disseram-me que me matariam porque já tinham dado ordens para ninguém mais ir ao garimpo ou às lavras naquela zona”, explica o camponês.

Fizeram mais alguns disparos contra a água, à sua volta, obrigaram-no a sair da água. Conforme depoimento da vítima, os comandos usaram a sua catana para cortar dois paus de uma árvore para o açoitarem. “Enquanto os dois fardados me batiam nas costas com os paus, o terceiro me violentava nas nádegas com catana”, conta.

O camponês diz ter perdido a conta de quantas vezes foi vergastado nas costas e nas nádegas, resumindo apenas que “ foi muita tortura”. Soltaram-no depois de lhe terem rasgado a roupa de trabalho, deixando-o nu e tendo-lhe roubado as calças limpas e dois mil kwanzas.

Tangere Cassoca apresentou queixa no Comando Municipal da Polícia Nacional (PN). O segundo comandante recebeu-o e solicitou a presença do comandante da 16.ª Brigada de Infantaria das FAA, brigadeiro Ponta Negra, estacionada no Cuango, para tomar nota do caso. De acordo com o depoimento do camponês, o oficial da PN denunciou os abusos sistemáticos dos militares contra civis e solicitou a intervenção do brigadeiro e do major que o acompanhava no sentido de imporem disciplina no seio da tropa. Os comandos fazem parte da Operação Transparência, baseada em Malanje, que tem como objectivo combater o garimpo de diamantes e a imigração ilegal.

O segundo comandante , conhecido como Santiago, encaminhou o camponês ao hospital local, para que recebesse tratamento, e agendou-lhe um encontro com o administrador municipal, Guilherme Cango, que teve lugar a 29 de Julho. A sensibilidade do segundo comandante é digna de registo.

Segundo vários depoimentos, os militares têm cobrado aos garimpeiros entre 20 mil e 30 mil kwanzas para trabalharem nas zonas por si ocupadas, por períodos de cinco dias a uma semana, sendo agora parte do problema, e não da solução.

Tito Njita: tortura por falta de bilhete de identidade

Tito Njita, de 58 anos, tomava o pequeno-almoço em casa do seu primo Francisco Tchacunda, por volta das 8h00 de 7 de Julho passado, quando agentes da Polícia interromperam a sua refeição para lhe exigir que apresentasse o bilhete de identidade.

Tito Njita

Com residência habitual na sede do município do Cuango, com o mesmo nome, Tito Njita visita com frequência a localidade de Cafunfo, a 50 quilómetros, e respondeu ao convite do seu primo para o pequeno-almoço. O menu era simples. Pão “sem nada” e café, mas o desenrolar dos eventos deixou-o com sérios problemas de saúde, depois de ter sido brutalmente espancado por agentes policiais.

“Enquanto mata-bichávamos, ouvimos barulho lá fora. Pedi ao Francisco, como dono da casa, para ver o que se passava. Estavam seis agentes da Polícia Nacional no quintal dele. O [agente] Cortina entrou logo na sala e pediu-me o bilhete de identidade. Conhecemo-nos muito bem”, explica o cidadão, natural de Caungula, província da Lunda-Norte.

“Perguntei ao Cortina por que que me estava a pedir bilhete de identidade dentro de casa, onde me encontrou a mata-bichar, e porque me conhece bem”, conta.

Sem meias medidas, o agente deteve-o e conduziu-o para fora da residência, pondo fim ao mata-bicho. A caminho da esquadra, dois sobrinhos de Tito Njita seguiram-no para saber junto dos seis agentes as causas da detenção. Não existindo justificação alguma, libertaram-no e Njita foi para a sua casa.

Passada meia hora, Tito Njita decidiu dar um passeio. Depois de alguns minutos na rua, regressou a casa para buscar o seu chapéu. Uma patrulha mista de cerca de dez agentes da Polícia de Intervenção Rápida (PIR), da Polícia de Guarda Fronteiras (PGF) e um investigador do Serviço de Investigação Criminal (SIC) detiveram-no novamente.

“Mano, aquilo foi porrada mesmo ali. Todos eles [agentes policiais] espancaram-me sem mais quaisquer conversas, com pontapés e coronhadas, da cabeça aos pés, por todo o corpo. O meu primo Tchacunda veio saber o que se passava e também foi espancado ali mesmo”, revela Tito Njita.

Segundo Tito Njita, no posto policial do bairro Bala-Bala, para onde os primos foram levados, os agentes policiais que os agrediram, alguns dos quais foram devidamente identificados como sendo o Cortina, Júlio, Paulito e Rui, justificaram a sua brutalidade: “Disseram que os meus sobrinhos rasgaram a farda de um dos agentes, mas nunca apresentaram a tal farda rasgada. Como é que dois rapazes desarmados poderiam agredir seis agentes da Polícia Nacional armados”, relata o tio das vítimas.

Após o interrogatório, conforme conta Tito Njita, o investigador do SIC, cujo nome não foi identificado, “cobrou-nos” cinco mil kwanzas para sermos libertados. Os familiares pagaram e os primos regressaram a casa.

“Até hoje, mal consigo andar, de tanta coronhada e pontapés que levei pelo corpo inteiro. Já nem sequer tenho dinheiro para continuar o tratamento médico”, queixa-se Tito Njita.

O Maka Angola tentou, sem sucesso, ouvir a versão de alguns dos agentes acusados de terem espancado os primos.

Kuzuela Charles: comandante parte braço alheio por um telefone

Ao passar frente ao posto militar de Quilela, na comuna de Cassanje Calucala, no município de Xá-Muteba, Kuzuela Charles, de 37 anos, cumprimentou o comandante. Dirigia-se ao garimpo.

Kuzuela Charles

“Pelo caminho, parei para fazer uma chamada telefónica. O comandante afinal seguiu-me e acusou-me de estar a fazer muitas chamadas. Eu estava à procura de melhor sinal de rede. Pediu-me o telefone. Por respeito à autoridade, entreguei”, conta o garimpeiro.

Cioso do seu bem, seguiu o comandante até à unidade, com o objectivo de recuperar o seu telefone.

“Assim que me viu, o comandante acusou-me de ser senegalês e mandou que me metessem na cela. Passados 15 minutos, mandou que me retirassem. Ordenou que me deitasse de barriga para baixo e começou a torturar-me no rabo com uma grande moca. Quando eu tentei proteger as nádegas, partiu-me o braço esquerdo”, explica.

De acordo com o seu testemunho, “um dos militares gritou ‘o comandante partiu o braço do filho alheio’”.

O comandante, cujo nome não foi identificado, colocou novamente o ferido na cela sem qualquer tratamento à fractura nos ossos. No dia seguinte, “o comandante pagou mil kwanzas a uma curandeira para me tratar. Disse-me que eu tinha de regressar ao garimpo e trabalhar para ele. Só assim me devolveria o meu telefone”, explica Kuzuela Charles.

Com uma tala e medicamentos tradicionais improvisados pela curandeira, o garimpeiro teme o pior. “Não sei se poderei voltar a cavar como antes. Não estou bem. Não sei como vai ficar o meu braço”, lamenta.

As mortes de Calonda

Jeremias Machata, de 27 anos, foi morto a tiro na madrugada de 28 de Abril passado, no sector de Calonda, município de Lucapa (província da Lunda-Norte), por um guarda da empresa de segurança DSL, na zona de garimpo próxima do bairro Kambau.

Segundo os garimpeiros, a confusão resultou de falta de palavra dos efectivos da segurança privada da DSL, a quem eles haviam pago, no dia anterior, a quantia de 200 mil kwanzas para terem “permissão” de garimpar na área em questão.

A tragédia foi testemunhada pelo cunhado da vítima, Jordan Txitenga, e por colegas seus de garimpo, que informaram os restantes familiares. Estes, por sua vez, comunicaram o crime aos agentes da Polícia Nacional, que foram remover o cadáver. Um segundo cunhado, Lucas, foi ferido com um tiro no braço direito e no peito.

Houve tumultos entre os agentes policiais e a família sobre a posse do corpo, tendo as autoridades decidido levar o corpo para a morgue, enquanto os parentes insistiam em levá-lo para casa.

Segundo várias testemunhas oculares, para resolver a contenda, um comando não identificado, parte da operação, atingiu mortalmente uma menina de 10 anos, Júlia Pinto, que seguia a caminho da escola . (Abstemo-nos de publicar aqui a chocante imagem desta pequena e inocente vítima.)

Júlia Pinto, a menina tragicamente assassinada pelo comando

Por sua vez, o segundo comandante da 2.ª Esquadra de Calonda, conhecido apenas por Tufa, sacou da pistola e efectuou vários disparos tendo atingido uma cidadã no queixo. As imagens do vídeo em nossa posse mostram como a bala rasgou o queixo da cidadã, cujo nome não foi possível identificar.

No vídeo, a mulher atingida no queixo explica que se encontrava junto a sua casa, sem quintal murado, com um fósforo na mão para acender o fogareiro e cozinhar, quando testemunhou o espancamento de um cidadão por agentes da Polícia Nacional. “Os jovens [presentes no local] pediam à Polícia para não baterem no cidadão. O comandante Tufa vinha acompanhado por dois agentes seus, o Paulo e o Fonseca, e começaram a disparar contra nós. Atingiram-me com uma bala no queixo”, conta.

No tiroteio, um segundo indivíduo, também não identificado, foi atingido com um tiro no pé direito.

No mesmo dia, um responsável da empresa privada de segurança DSL reuniu, na Esquadra de Calonda, com os familiares de Jeremias Machata, sob testemunho de oficiais da Polícia Nacional.

A reunião, segundo os familiares resultou na admissão do homicídio por parte do guarda da DSL e na entrega imediata de 25 mil kwanzas pelo responsável da DSL à família, para as despesas do óbito.

Conforme apalavrado na reunião, no dia seguinte, na presença da administradora municipal do Lucapa, Maria Teresa Néia Muengita, o responsável da DSL entregou aos familiares os seguintes bens para a realização das cerimónias fúnebres: 150 mil kwanzas, um caixão, um saco de arroz, um saco de fuba, uma caixa de peixe carapau, duas caixas de frango, caixas de massa alimentar, quatro grades de refrigerantes, três grades de cerveja, cinco pacotes de café, dez quilos de açúcar, duas caixas de vinho e dez litros de óleo alimentar.

Depois do enterro, foi dito aos familiares que aguardassem pelo encontro com o procurador. Esse encontro não se realizou e a família continua a clamar por justiça e por uma indemnização.

A DSL era contratada do Projecto Calonda, de exploração diamantífera. Segundo fonte da direcção do referido projecto, o contrato com a DSL foi terminado em Maio passado.

Entretanto, logo depois da tragédia, o comando provincial da Polícia Nacional da Lunda-Norte emitiu um comunicado em que assumia responsabilidade pela morte da menina de 10 anos, resultante da acção policial.

Como é prática corrente sempre que as autoridades reconhecem o envolvimento de agentes seus em casos de homicídio, a administração municipal do Lucapa, através da sua administradora, Maria Teresa Néia Muengita, tratou da morte da menina Júlia com bebidas, coxas de frango e fuba.

“O governo deu-nos 200 mil kwanzas, 13 grades de bebidas, cinco caixas de coxas de frango, um saco de fuba e um saco de arroz”, explica Pinto Manjolo, o pai da malograda.

“A minha filha estudava a segunda classe, ia para a escola quando foi baleada. Agora a polícia diz-me que não posso fazer confusão porque o governo vai assumir a responsabilidade. Assumir a responsabilidade por uma vida perdida é dar-nos fuba e bebidas?”, interroga-se o pai da menina.

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