Tribunal supremo anula invenção de rapto

A 1.ª secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, no âmbito do processo n.º 1573/18, absolveu Garcia José Dala, Adão António Dala Hebo, Teixeira Mateus Vinte, Passmore Hachalinga e Burns Mussa Sibanda dos crimes pelos quais foram pronunciados, julgados e condenados em primeira instância. O mesmo acórdão também extinguiu a responsabilidade criminal de João Alfredo Dala por morte.

O acórdão, datado de 15 de Maio de 2019 e que ontem chegou às mãos dos visados, tem 44 páginas, e vale a pena lê-las. É uma peça exemplar sobre a invenção do rapto, a indiscritível tortura de um inocente por altos oficiais do Serviço de Investigação Criminal (SIC) e a obstinada parcialidade do juiz de causa, que levaram à condenação dos pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Como determina a lei, começa por um Relatório que resume a situação do processo que chega a Tribunal, isto é, as fases processuais entretanto decorridas: instrução, julgamento e condenações, bem como o teor dos recursos. Esta parte ocupa as primeiras 16 páginas. Depois, nas páginas 17 e 18, temos o recurso do assistente judicial do processo (o pastor Daniel Cem), que pretendia aumentar as penas a que os arguidos haviam sido condenados. De seguida, nas páginas 19 e 20, é a vez do Ministério Público, que no Tribunal Supremo, ao contrário dos seus colegas que acusaram em primeira instância, admite que não há provas e que os arguidos devem ser absolvidos.

É na página 20 que tem início a decisão propriamente dita. É uma decisão corajosa tomada pelos juízes Joel Leonardo, Aurélio Simba e João Pedro Kinkani Fuantoni, e sem dúvida merece aplauso.

Primeiramente, porque, após definir o objecto do recurso, os juízes conselheiros começam por uma veemente chamada de atenção ao juiz António Francisco, da 13.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, no Kilamba Kiaxi, pela falta de rigor que demonstrou no julgamento, tendo inclusivamente dado como provados factos contraditórios.

Não há dúvidas de que o papel do juiz António Francisco tem de ser investigado, sobretudo depois do “puxão de orelhas” que os juízes do Tribunal Supremo lhe dão.

Com a mesma coragem, os juízes conselheiros chamam a atenção para a “forma cruel” como João Dala foi torturado, e fazem participação criminal ao SIC, para que este proceda a uma investigação criminal. Esperam-se agora os resultados dessa investigação.

De igual modo, mostraram o seu espanto e obviamente anularam a condenação dos pastores Burns Mussa Sibanda, do Zimbabué, e Passmore Hachalinga, da Zâmbia, que vinham acusados dos crimes de difamação e calúnia, e saíram condenados por rapto, sem que tivesse havido qualquer modificação dos factos que lhes eram imputados. Um procedimento totalmente bizarro e anómalo!

O Tribunal Supremo também verificou que o declarante Rui Domingos Castelo, favorável a Daniel Cem, tinha faltado à verdade no julgamento, sendo que o juiz ignorou este facto.

E, mais uma vez, o Tribunal Supremo manda extrair certidão destas declarações, para a eventual investigação de um crime de falsas declarações por parte de Rui Castelo.

Ainda nas questões prévias sobre que se debruçou, o Tribunal Supremo declarou “deserto” (inexistente) o recurso de Daniel Cem, por não ter pagado as custas, e criticou o juiz Francisco pelo valor de uma multa aplicada ao arguido Teixeira Mateus Vinte.

O passo seguinte é a fundamentação da decisão (p. 25). Começa pela descrição da matéria de facto dada como provada na primeira instância, após o que procede à apreciação dos factos (p. 32).

O primeiro aspecto salientado é que a prova do processo se baseava apenas nos testemunhos do pastor Daniel Cem e de seus familiares (irmão, sobrinhos, mulher) e amigos, sendo que estes testemunhos não têm qualquer credibilidade, por se terem revelado desencontrados e ilógicos. Desde logo, porque a participação do rapto foi feita antes de o alegado rapto acontecer…!

Pergunta o Tribunal Supremo: “Como foi possível antecipar a participação do suposto rapto em cerca de 12 horas da sua ocorrência?” E mais adianta, na p. 33: “Como é que um processo que nasce de um vício de tamanha incoerência foi capaz de criar convicção necessária às fases, sucessivas, de formação do corpo de delito, pelos Magistrados do Ministério Público e Judicial?” É realmente incrível. Outras incongruências e incoerências da prova são salientadas pelo Tribunal Supremo, criticando todo o comportamento processual do juiz de primeira instância, que não cumpriu os requisitos mínimos do processo penal.

Segundo os colendos conselheiros, o juiz Francisco mostrou-se “arrogante e arbitrário”. E elencam variados exemplos de falta de lógica e coerência por parte do juiz, além do facto de ter omitido qualquer pronúncia sobre a tortura a que João Dala foi efectivamente submetido.

O Acórdão é exaustivo na desmontagem dos erros e omissões inaceitáveis do juiz. Por exemplo, na p. 39, afirma: “Mais uma vez o tribunal ignorou provas tão evidentes (…), tendo de forma arbitrária condenado os réus, violando desse modo o princípio da verdade material.”

No final, o Tribunal conclui que o rapto não existiu, antes tendo sido resultado de conjecturas e fantasias (p. 40). Depois destas conclusões, procede à aplicação do Direito, que neste caso é simples, e absolve os arguidos.

Este Acórdão é importante pelo aturado exercício lógico e de análise da prova a que procede. E faz um sério aviso aos juízes incompetentes, corruptos e parciais: eles passam a estar vigiados, tal como os agentes torturadores do SIC.

Espera-se agora que o Conselho Superior da Magistratura Judicial, o Ministério Público e o SIC cumpram as directivas que o Tribunal Supremo lhes deu, e investiguem quer o papel do juiz António Francisco nesta farsa, quer os responsáveis pela tortura e pela morte de João Dala.

Vale a pena ler o Acórdão que se segue, pela sua coragem cívica e pela coragem no uso da lógica aplicada ao Direito.

*Correcção a 07/07, 15h52: o nome João da Cruz Pitra foi corrigido por João Pedro Kinkani Fuantoni. Pedimos desculpa pelo lapso inicial, que resultou da ilegibilidade da respectiva assinatura.

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