Para que serve o vice-presidente da república?

As notícias que temos recebido sobre a actividade do vice-presidente da República têm oscilado entre o patético (as congratulações com o nascimento do filho de Harry e Meghan, no Reino Unido) e o bizarro (o desmentido de que Bornito de Sousa siga nas redes sociais uma menor que se apresenta de biquíni reduzido). Face a este grau zero da política, impõe-se uma pergunta: para que serve o vice-presidente da República?

Manuel Vicente, que ocupava este mesmo cargo antes de cair em desgraça, tinha assumido a direcção da área social do Executivo. Na prática, não alcançou quaisquer resultados, mas pelo menos pareci que estava a desenvolver alguma actividade de interesse. Sobre o actual vice-presidente, não se conhece nada de relevante.

Já sabemos que os arautos de serviço rapidamente virão invocar a Constituição norte-americana, que criou a figura do vice-presidente, definindo as suas funções de forma mínima: compete-lhe essencialmente substituir o presidente em caso de vacância do cargo, e presidir ao Senado. Entretanto, a prática tem-se encarregado de atribuir mais funções ao vice-presidente americano, transformado numa espécie de porta-voz do Executivo e conselheiro do presidente. Contudo, o desempenho deste papel depende da vontade do próprio Presidente e tem variado ao longo dos anos.

John Adams, o primeiro vice-presidente norte-americano, e depois segundo presidente do país, escreveu à mulher que a vice-presidência era “o mais insignificante cargo que a invenção do homem criou ou a sua imaginação concebeu”.

Na verdade, não é tanto assim, pois se a vice-presidência nos EUA é um cargo razoavelmente vazio, o certo é que funciona como antecâmara de espera para a presidência: este lugar fica “vago” em caso de morte ou demissão do presidente, e, por outro lado, o vice-presidente vai adquirindo experiência e notoriedade suficientes para suceder ao presidente em futura eleição. Na realidade, John Adams sucedeu a George Washington, e George Bush (pai) foi eleito presidente ao fim de oito anos como vice-presidente de Ronald Reagan. Por sua vez, Lyndon Johnson tornou-se presidente após a morte de John Kennedy, e Gerald Ford ocupou o cargo após a demissão de Richard Nixon. E, actualmente, o vice-presidente de Barack Obama, Joe Biden, está a tentar ganhar as próximas eleições a Donald Trump. Mas, de facto, tirando esta espécie de expectativa, a relevância do cargo de vice-presidente nos EUA é bastante diminuta.

No entanto, mais uma vez, não podemos estabelecer uma analogia perfeita com a Constituição angolana. Curiosamente, no caso angolano, as funções do vice-presidente são mais robustas. Segundo o artigo 131.º, n.º 1, o vice-presidente “é um órgão auxiliar do presidente da República no exercício da função executiva”. No mesmo artigo, n.º 3, é determinado que o vice-presidente “substitui o presidente da República nas suas ausências no exterior do País, quando impossibilitado de exercer as suas funções, e nas situações de impedimento temporário, cabendo-lhe neste caso assumir a gestão corrente da função executiva”.

Quer isto dizer que, em Angola, o vice-presidente tem uma relevância política mais significativa do que nos Estados Unidos. É uma espécie de ministro superior, e substitui, mais frequentemente que nos EUA, o presidente.

Logo, o vice-presidente angolano não pode ser deixado no limbo, e apenas comparecer a funerais de Estado, como às vezes acontece nos Estados Unidos.

Em Angola, por força da Constituição, o vice-presidente tem de participar na governação, auxiliando o presidente. Isto implica que, da mesma forma que o presidente da República elabora a legislação que confere a cada ministro as atribuições e competências que este deve exercer, o mesmo tem de acontecer em relação ao vice-presidente. É um imperativo constitucional que lhe sejam atribuídas funções de auxílio na condução do poder executivo.

Não há dúvida de que esta é uma norma curiosa na Constituição angolana. Tão preocupada esteve em salvaguardar o poder presidencial imperial, que deixou aqui uma nesga ínfima de abertura para outras figuras exercerem parte das funções presidenciais.

Face a esta disposição mais robusta da figura do vice-presidente, tal como é determinada pela Constituição angolana, fica a dúvida acerca das razões pelas quais Bornito de Sousa tem representado o grau zero da política. Não lhe foram atribuídas funções por João Lourenço, ou é ele que não as exerce?

É evidente que Bornito representa a velha-guarda eduardista que João Lourenço se propõe combater, e talvez essa seja a razão política para o seu total esvaziamento presente.

Contudo, era importante que, em vez da constante “fulanização” das funções, houvesse uma preocupação em fazer funcionar as instituições e a lei.

Como temos escrito várias vezes, os cesarismos voluntaristas, no final do dia, acabam por resultar em ditaduras infelizes. Estar do lado de João Lourenço não é aplaudir tudo o que ele faz, com respeito ou desrespeito pela lei: é antes ser exigente e lembrar-lhe que o maior legado que pode deixar é um país a funcionar com normas e instituições saudáveis.

Em termos simplistas, ou se dá trabalho ao vice-presidente, ou se exige a demissão do vice-presidente, com base na evidência de que ele não tem competências para desempenhar o cargo. Deixá-lo no posto para que se limite a enviar congratulações no momento dos nascimentos reais ou para negar que segue menores nas redes sociais é absolutamente indigno.

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