Os Pequenos (Grandes) Passos da Justiça

“Toda a grande caminhada começa com um simples passo”, terá dito Buda. Independentemente de ter ou não ter sido ele o autor do aforismo, o que importa reter é o espírito que deve acompanhar o funcionamento da justiça, nesta hora de grande pressão para mudanças reais em Angola.

Um dos maiores legados que a magistratura de João Lourenço poderá deixar é de facto este: a promoção e a garantia da independência, imparcialidade e bom funcionamento da justiça angolana.

Alguns simples e pequenos passos estão a ser dados no caminho certo relativamente aos direitos humanos. Mencionamos dois, a título de exemplo.

Tem sido reportado nestas páginas o caso do falso rapto do ex-pastor Daniel Cem, que envolveu tortura, morte, e julgamentos enviesados. A invenção de um rapto, a indescritível tortura de um inocente por altos oficiais do Serviço de Investigação Criminal (SIC) e a obstinada parcialidade do juiz de causa, que levaram à condenação inicial de pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia, foram assuntos demasiado graves para não merecerem denúncia sistemática.

Afortunadamente, foi colocado um ponto final a essa tramóia, por decisão recente do Tribunal Supremo, que absolveu todos os supostos raptores, com excepção de João Dala. Tragicamente assassinado, Dala nunca soube que teria sido absolvido.

Todavia, a justiça só será realmente feita depois de se verificar como foi possível tais eventos acontecerem. Como foi possível colocar a máquina judiciária a torturar, a matar e a condenar pessoas inocentes?

Ao longo da investigação que realizámos no Maka Angola, apurámos que o comissário Fernando Bambi Receado, o subcomissário Ngola Kina, o comissário Pedro Lufungula, o especialista Elifaz Simão Sebastião Germano e o agente Paulino Quizanga Andrade são os principais agentes públicos do SIC que participaram na tortura que levou à morte de João Dala. Reportámos que Daniel Cem, o seu irmão Henriques Carlos Quissola (Carlos Cem), e os seus sobrinhos tenente-coronel Domingos Terça Massaqui e Roberto Cem Pinto Leite também torturaram João Dala e participaram na “invenção” do rapto. Por sua vez, ficou claro, no supramencionado Acórdão do Tribunal Supremo, que o juiz João António Francisco andou muito mal na sua intervenção processual, além de ter omitido a participação criminal quando se confrontou com os indícios da tortura assassina.

Face ao exposto, é de aplaudir o facto de o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) ter iniciado um processo de inquérito relativamente ao comportamento do juiz João António Francisco.

A 16 de Julho, o autor prestou declarações à Inspecção do CSMJ, referente às denúncias feitas sobre o comportamento do juiz João António Francisco nas páginas do Maka Angola. Depois de muitos anos a responder criminalmente por denunciar esse tipo de abusos, atrocidades e actos de corrupção, é radical, para o autor, ser ouvido no sentido de contribuir para a descoberta da verdade material e a devida aplicação da justiça.

É importante perceber que os magistrados não podem ser caprichosos agentes das suas vontades próprias, mas sim aplicadores justos e equilibrados da lei. Comportamentos absurdos, tirânicos, indiciadores de corrupção ou parcialidade devem ser punidos; e os juízes devem ter plena consciência de que a sua função é simultaneamente a mais nobre e a mais exigente de todas as funções soberanas: administrar a justiça em nome do povo.

No mesmo sentido, é estimulante notar que a Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu um inquérito em relação aos factos e deve investigar os torturadores de João Dala. Importa notar também o estímulo que foi a abertura, pela PGR, do inquérito sobre as execuções extrajudiciais em finais de 2017. Até ao momento, apenas o silêncio fala na PGR sobre o caso.

Estes dois simples passos do Conselho Superior da Magistratura Judicial e da PGR são simbólicos, mas representam avanços enormes na justiça angolana.

Abrir inquéritos a juízes e a oficiais superiores do Serviço de Investigação Criminal e seus acólitos não era hábito. Hábito era a protecção da injustiça, do arbítrio e da tirania.

Por isso, é de saudar publicamente estes dois passos das instituições de justiça. Esperamos, então, celeridade e isenção na condução destes processos, para que no final ninguém duvide dos seus resultados.

Obviamente, nestes desenvolvimentos tem importância a magistratura de influência que o presidente da República tem desempenhado. Não no sentido de interferir directamente na justiça, mas na perspectiva de criar um ambiente propício à independência e imparcialidade do poder judicial.

O papel do presidente é precisamente esse: garantir a independência do poder judicial e dar-lhe os meios para a sua efectivação. João Lourenço tem estado a desenvolver uma retórica com esse propósito e começa a prover recursos e a emitir sinais sobre os seus objectivos em relação à justiça. O presidente vai aliviando a carga negativa que pesa sobre os órgãos de justiça, que se sentiam como meros instrumentos dos desígnios do executivo e não como aplicadores da lei.

Naturalmente, estamos no início do caminho, não a meio e muito menos no fim. Por isso, lutemos pela realização da justiça, pela sua imparcialidade e isenção, exercendo a cidadania de forma plena na denúncia, no estímulo e na apresentação de soluções.

Como escreveu o poeta andaluz Antonio Machado:

“Ao andar se faz caminho,
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se voltará a pisar.”

Queremos que as palavras de Machado sejam as nossas: o caminho faz-se caminhando, e não se volta atrás.

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